Neurônios em marcha lenta

Hipotireoidismo protege o cérebro de agressões como o derrame

Marcos Pivetta 
© Mariana Sampaio

Quando agredido, o cérebro humano consegue às vezes reagir de forma fascinante. Em certos casos ainda não muito bem compreendidos é capaz de deslocar o controle de funções vitais, que eram comandadas por áreas agora lesionadas, para regiões com conexões neuronais ainda preservadas. Esse não é o único esforço de autopreservação do órgão diante de uma ameaça. Estudos coordenados nos últimos dois anos pelo brasileiro Antonio Bianco, chefe da Divisão de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo da Escola de Medicina da Universidade de Miami, enfocam outro tipo de plasticidade do cérebro, bem menos conhecida, mas igualmente manifestada em situações de perigo: a capacidade de regular a quantidade do hormônio da tireoide que atua localmente em suas células e, dessa forma, acelerar ou brecar o ritmo de funcionamento de acordo com suas necessidades. Outros órgãos, como o coração, os músculos e os nervos, também exibem essa faculdade, mas nenhum deles de forma tão refinada como o cérebro.

Num trabalho recente com células do cérebro humano cultivadas in vitro, publicado em junho no Journal of Clinical Investigation (JCI), Bianco descreve o complexo mecanismo celular que permite ao cérebro diminuir a taxa de funcionamento desses hormônios quando ocorre um problema de saúde como um derrame. Na interpretação do pesquisador, a redução faz parte de um esforço adaptativo do órgão para frear seu metabolismo e, assim, tentar minimizar os efeitos nocivos da condição clínica. “O cérebro aumenta ou diminui o nível do hormônio da tireoide em razão de estar exposto a situações de doença ou de saúde”, diz o endocrinologista. “O derrame causa um hipotireoidismo no tecido cerebral, localizado, que, ao que tudo indica, é benéfico ao organismo.”

O acidente vascular cerebral, nome técnico do derrame, causa hipóxia. Faltam sangue e oxigênio para o bom funcionamento dos neurônios. Se for privado por muito tempo desses elementos, o tecido cerebral morre. Confrontado com essa ameaça, o cérebro diminui os níveis locais dos hormônios da tireoide, passa a usar menos energia e os neurônios demandam menos oxigênio. Adotar um metabolismo no modo slow-motion é uma forma de lutar contra os efeitos nocivos do derrame. Outros dois brasileiros também participaram do estudo do JCI, Rui Maciel, da Universidade Federal de São Paulo, e a aluna de doutorado Beatriz Freitas.

Transformação – Entender como o cérebro modula o impacto local do hormônio da tireoide envolve um conhecimento de todo o processo de metabolização dessa substância. Localizada na base frontal do pescoço, a glândula tireoide utiliza iodo dos alimentos para fabricar não um, mas dois hormônios: a tiroxina (T4) e a tri-iodotironina (T3). Numa pessoa normal, cerca de 80% do hormônio secretado é T4 e o restante, T3. A tireoide produz essas duas formas de hormônio e as despeja no sangue, que as distribui aos tecidos do corpo. Tecnicamente, o T4 é um pró-hormônio, uma forma menos ativa do hormônio da tireoide que, para influenciar o metabolismo, precisa ser convertida por uma enzima para T3, sua versão ativa. Então, o que conta, em termos práticos, é a quantidade de T3 presente em um órgão específico.

Efeito duplo – Bianco é um dos maiores especialistas do mundo nas desiodases, um conjunto de três enzimas (D1, D2 e D3) que ativam ou desativam os hormônios da tireoide, e encontrou no cérebro um padrão de expressão muito particular dessas proteínas. Segundo o modelo proposto no JCI, a enzima D2 atua nas abundantes células gliais do cérebro, que dão suporte aos neurônios e os nutrem. Essa enzima converte o T4 em T3, elevando a taxa da forma ativa do hormônio da tireoide no órgão. O T3 resultante da ação da D2 é transportado para as células neuronais adjacentes às gliais. Num derrame, a falta de oxigênio reduz a produção de T3 nas celulas gliais ao mesmo tempo que os neurônios aumentam a expressão de outra desiodase, a D3, que inativa o T3. “Um quadro de hipóxia faz a expressão da enzima D3 aumentar cerca de sete vezes nos neurônios”, explica Bianco. Em outras palavras, coloca isoladamente o cérebro numa condição análoga à de um indivíduo com hipotireoidismo. O órgão passa a funcionar em marcha lenta, consumindo menos energia e minorando os estragos da escassez de oxigênio. Há indícios ainda de que o hipotireoidismo instalado em certos tecidos estimule a proliferação de células e, assim, ajude na regeneração e cura de doenças.

Na prática médica, os endocrino­logistas estão preocupados com a concentração que circula no sangue de hormônio ativo da tireoide. É ela que diz se uma pessoa tem hipo ou hipertireoidismo, duas condições anormais que podem causar problemas de saúde se não forem tratadas. Mas olhar para os níveis desse hormônio em tecidos específicos, tanto em quadros associados a doenças como em situações de plena saúde, também pode fornecer informações importantes. “Alguns estudos já mostraram que, em indivíduos à beira da morte, reaparece uma quantidade aumentada da enzima D3 em tecidos como o fígado, os músculos e o coração”, afirma Bianco. Como se viu, a maior produção da D3 num tecido reduz drasticamente a presença da forma ativa do hormônio da tireoide. Nesses casos terminais, o hipotireoidismo é aparentemente a derradeira cartada do organismo para desacelerar ao mínimo possível o gasto energético e, talvez, permanecer vivo. A estratégia parece fazer sentido. Afinal, as células de pacientes com hipotireoidismo podem consumir cerca da metade da energia das células de indivíduos normais e um quarto das de pessoas com hipertireoidismo.

(Fasesp)

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