Marcadas para morrer

Brasileiros descobrem molécula que reconhece proteínas com defeito e as encaminha para serem destruídas pelas células; o estudo saiu na revista Nature
 
© Claudio Joazeiro
Imagem mostra a a distribuicao celular da proteína listerina em celulas humanas em cultura

Uma dupla de jovens pesquisadores brasileiros radicados nos Estados Unidos descobriu que, sem uma determinada proteína, os seres eucariotas (fungos, plantas e animais, inclusive o homem) não conseguem desempenhar uma função vital para sua sobrevivência: destruir proteínas que foram erroneamente produzidas por suas próprias células. Organismos desprovidos da proteína listerina perdem a capacidade de identificar alguns tipos de proteínas aberrantes recém-fabricadas e de eliminá-las por meio de seu sistema de controle de qualidade das células. A conclusão faz parte de um estudo publicado ontem (12/09) na edição eletrônica da revista científica Nature por Claudio Joazeiro, bioquímico de 42 anos que chefia um laboratório no Scripps Research Institute, de La Jolla (Califórnia), e Mario Bengtson, aluno de pós-doutorado de 35 anos. A ausência da listerina leva ao acúmulo de proteínas tóxicas nas células cujo excesso pode estar implicado no aparecimento de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer e o Parkinson.

“Descobrimos quase por acaso o papel da listerina nesse processo”, diz Joazeiro, estudioso dos mecanismos envolvidos na regulação celular. Há alguns anos, o brasileiro e o biólogo molecular Steve Kay, hoje na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), haviam mostrado que camundongos com uma mutação no gene LISTER, responsável pela produção da proteína listerina, desenvolviam problemas nos neurônios motores da medula espinhal. Como esse tipo de desordem neurodegenerativa parece ser desencadeada pela ocorrência exagerada de proteínas defeituosas, Joazeiro e Bengtson resolveram averiguar se o gene, que é preservado em praticamente todos os organismos eucariotas, da levedura ao homem, não poderia ser importante para o bom funcionamento do processo de faxina celular. A hipótese estava correta. Conforme relatam no artigo da Nature, eles desligaram na levedura Saccharomyces cerevisiae um gene chamado LTN1 (equivalente ao LISTER) e viram que suas células eram incapazes de reconhecer e destruir algumas formas de proteínas aberrantes e acabavam morrendo. Sem a listerina, o controle de qualidade celular falhava. “Trabalhar com leveduras é barato e tem a vantagem de fornecer resultados com rapidez”, comenta Bengtson.

Os brasileiros não só descobriram o que faz a listerina, mas também como a proteína exerce seu papel de sentinela das células, de delatora da presença de proteínas defeituosas. Ela se liga aos ribossomos — a estrutura das células responsável pela síntese das proteínas a partir da informação genética fornecida pelo RNA mensageiro — e marca as proteínas defeituosas recém-fabricadas com uma espécie de etiqueta química da morte: moléculas de ubiquitina, uma família de proteínas fundamentais para o processo de regulação celular. As ubiquitinas receberam esse nome justamente por serem ubíquas, por estarem presentes em praticamente todas as células de organismos eucariotas. Proteínas aberrantes (ou desnecessárias) que carregam esse selo químico da destruição são encaminhadas para o proteassoma, estruturas encarregadas de degradá-las e reduzi-las a cadeias químicas de uns poucos aminoácidos.

A presença da listerina nos ribossomos cola as moléculas de ubiquitina numa forma específica de proteína aberrante: naquelas codificadas por RNA mensageiros que não apresentam o chamado códon de terminação. Um pouco de conhecimento de bioquímica ajuda a entender como ocorre esse tipo de defeito. As proteínas são formadas por uma cadeia de aminoácidos. A receita para a adição de cada aminoácido à cadeia é fornecida pelo códon, uma sequência de três bases nitrogenadas contida no RNA mensageiro. O último códon, necessário para completar a síntese de uma proteína, é chamado códon de terminação. “Ele diz ao ribossomo que a proteína sintetizada chegou ao fim”, explica Joazeiro. Na ausência desse códon, portanto, o ribossomo continua adicionando aminoácidos indevidamente até alcançar o final da fita do RNA mensageiro. Outra função exercida pelo códon de terminação é sinalizar ao ribossomo que está na hora de liberar a proteína e se separar do RNA mensageiro. “Quando não há esse códon, o RNA e a proteína ficam presos no ribossomo e se gera uma proteína aberrante que não pode ser corrigida pelo sistema de controle das células”. Para que não haja acúmulo de material tóxico nas células, o sistema listerina-ubiquitina entra em ação e cola a etiqueta da morte na proteína defeituosa.

(Marcos Pivetta - Fasesp)

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