Detetive molecular

Nova técnica brasileira identifica adulterações em documentos e dinheiro falso

© eduardo cesar
Espectrômetro de massas analisa nota: simples e rápido

Nos últimos seis meses, o perito criminal Adriano Otavio Maldaner, chefe do laboratório de química forense da Polícia Federal em Brasília, se lembra de ter recorrido pelo menos uma dezena de vezes a uma sofisticada técnica de espectrometria de massas criada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para tirar dúvidas cruciais sobre a autenticidade do conteúdo de manuscritos redigidos com tinta esferográfica que faziam parte de processos judiciais. Nesse tipo de situação, os dizeres de uma carteira de trabalho ou de um testamento podem ser questionados se houver provas científicas de que a escrita sofreu alguma forma de adulteração. Anos depois de um documento original ter sido produzido, uma mão desonesta pode ter espichado um número três até que ganhasse os contornos de um oito ou acrescido algumas linhas que mudam o seu sentido. As falsificações grosseiras são fáceis de ser desmascaradas, mas as falcatruas de profissionais são um desafio até para os olhos mais treinados dos peritos. Nos casos mais complexos, Maldaner lançou mão então da Easi-MS (Easy Ambient Sonic-Spray Ionization Mass Spectrometry), técnica que, sem destruir a amostra em análise, pode, por exemplo, revelar quase instantaneamente se mais de um tipo de caneta foi usado na redação de um documento e se todos os escritos datam da mesma época ou há partes adicionadas posteriormente. “Já houve casos em que fiz um laudo, baseado em dados obtidos com o emprego da técnica, e o juiz me chamou para explicar como funcionava a espectrometria de massas”, conta Maldaner.

Com a Easi, desenvolvida em 2006 pelo professor Marcos N. Eberlin, fundador e coordenador do Laboratório ThoMSon de Espectrometria de Massas do Instituto de Química da Unicamp, é possível enxergar um padrão de envelhecimento da assinatura química deixada pela tinta de uma caneta. Com o passar do tempo, os corantes empregados nas esferográficas comerciais vão perdendo seus grupos metila (CH3) numa constância similar à de um relógio químico e, assim, revelam a data aproximada em que as linhas de um documento foram tracejadas. “Não dá para precisar exatamente a idade do traço, mas podemos fazer distinções seguras entre tintas jovens e velhas”, diz Eberlin, cujos trabalhos são financiados em grande parte por um projeto temático da FAPESP. Pode parecer pouco, mas um laudo científico capaz de atestar que a escrita de um documento é, por exemplo, da década de 1980, e não do ano 2000, torna-se uma peça determinante em disputas judiciais.

A Easi fornece ainda outro tipo de dado sobre tintas de canetas. Cada marca de caneta comercial produz uma assinatura química ligeiramente diferente. O método flagra essas diferenças. “Com a Easi, conseguimos examinar camadas sobrepostas de tinta sem danificar o papel e dizer se elas vieram de canetas distintas”, afirma Priscilla Lalli, aluna de doutorado que participou do estudo. As análises com a técnica de espectrometria de massas foram feitas com documentos reais, de várias idades, fornecidos pela Polícia Federal, e também com papéis submetidos a processos que simulam o envelhecimento.

Na essência, um espectrômetro de massas, cujos primórdios remontam a mais de século de pesquisas, pode ser comparado a uma balança capaz de pesar moléculas desde que elas estejam na forma de íons, de partículas carregadas eletricamente. Como os íons de duas moléculas de composições distintas nunca exibem o mesmo peso molecular, ou o mesmo perfil de isótopos, o método serve para diferenciá-las. A Easi faz parte de uma nova geração de técnicas que ampliaram o já enorme campo de ação da espectrometria de massas, hoje capaz de identificar e quantificar com eficiência cada tipo de molécula presente em gases, líquidos e sólidos e discriminar quais átomos formam essas moléculas e como eles estão arranjados.

A singularidade da técnica de espectrometria de massas reside na forma como as partículas eletricamente carregadas são geradas a partir de moléculas neutras. Essa etapa, denominada ionização, é crucial. Afinal, na imensa maioria dos casos as moléculas dos compostos estudados estão com suas cargas neutralizadas. Para obter íons, as técnicas mais tradicionais aplicam campos elétricos, elevam a temperatura ou fazem incidir radiações, como um laser, sobre o material em questão. As partículas eletricamente carregadas se desprendem da amostra e são então capturadas pelo espectrômetro. “A Easi é muito mais simples e suave do que as técnicas convencionais e só usa ar sob alta pressão para obter íons”, compara Eberlin, que desde o ano passado é presidente da Sociedade Internacional de Espectrometria de Massas (IMSS, na sigla em inglês). “Tudo de que precisamos para gerá-los é apenas um minicompressor.”

Amostra do mundo real - Os pesquisadores da Unicamp garantem que a técnica brasileira apresenta ainda duas grandes vantagens: pode ser usada à pressão atmosférica (não necessita de vácuo) e em diferentes condições ambientais (dentro do laboratório ou in loco) e as amostras analisadas não precisam passar por nenhum tipo de tratamento ou preparação prévia. Basta pegar o material a ser examinado tal qual está no mundo real e colocá-lo ao alcance do aerossol ionizante do espectrômetro. “O melhor tratamento da amostra é não fazer nenhum tratamento”, diz Eberlin. Como se vê, o acrônimo Easi foi intencionalmente escolhido para denominar o método por soar como a palavra inglesa easy, “fácil”, dando assim a entender que o uso da técnica brasileira realmente oferece poucas dificuldades.


(Fasesp - Marcos Pivetta)

Postar um comentário

0 Comentários