Alteração genética favorece paralisia dos membros em pessoas com hipertireoidismo
© Mariana Sampaio
Um diagnóstico difícil feito em 1998 inquietou o endocrinologista Magnus Régios Dias da Silva, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e o levou a identificar um dos fatores que predispõem a uma forma rara de paralisia: a paralisia periódica hipocalêmica tireotóxica, que atinge 1% dos homens e 0,1% das mulheres com hipertireoidismo – o aumento anormal da produção dos hormônios da tireoide, glândula situada na parte anterior do pescoço. Numa investigação que consumiu 10 anos de trabalho e contou com pacientes de outros cinco países, Magnus encontrou ao menos dois defeitos genéticos que, em certas situações, contribuem para bloquear temporariamente a contração dos músculos e, durante minutos ou horas, deixar imóveis as pernas e os braços.
Apresentados em uma série de artigos científicos, o mais importante publicado este ano na Cell, esses achados ajudam a compreender a cadeia de reações bioquímicas que levam os músculos, de tempos em tempos, a parar de responder às ordens voluntárias (conscientes) ou involuntárias (instintivas) de executar um movimento. A busca por conexões entre alterações em genes, variações nos níveis sanguíneos de hormônios e minerais e o surgimento dos sinais físicos dessa paralisia já produziu ao menos dois desdobramentos importantes para os médicos e para quem apresenta o problema.
O primeiro é que agora se compreende melhor como, quando e por que os portadores de hipertireoidismo podem sofrer essa perda repentina de força e sensibilidade, que, por razão desconhecida, é mais comum nas pernas. As crises que deixam os músculos flácidos, por vezes sem força para flexionar os dedos do pé, costumam surgir na madrugada, horas depois de uma atividade física intensa ou em seguida a uma refeição farta de massas e doces. O segundo desdobramento é de interesse especial para quem sofre dessa forma de complicação do hipertireoidismo.A constatação de que ela resulta da ocorrência simultânea de um defeito genético e de um distúrbio hormonal deve permitir o diagnóstico mais preciso e o tratamento mais adequado. Pouco conhecida entre os médicos de outras especialidades, essa forma de paralisia só cede definitivamente quando se controla a produção dos hormônios da tireoide.
Magnus identificou desde 1998 quase 40 casos do problema no Hospital São Paulo, ligado à Unifesp, e notou que muitos não recebiam a medicação correta. A maior parte dessas pessoas já havia passado por consulta com médicos de outras áreas, em geral clínicos gerais e psiquiatras, e recebia medicamentos indicados para tratar outras enfermidades. Como os sinais do hipertireoidismo muitas vezes são sutis e escapam aos médicos, o problema costuma ser confundido com outra forma de paralisia semelhante – a paralisia periódica hipocalêmica familial, que não envolve alterações hormonais – ou ainda com distúrbios psiquiátricos, a exemplo da ansiedade ou até mesmo da histeria, manifestação física de problemas emocionais estudada em fins do século XIX na França pelo neurologista Jean-Martin Charcot, professor de Freud. “Cerca de 70% das pessoas que atendemos na universidade com essa forma de paralisia já tinham sido tratadas com tranquilizantes, o que não resolve o problema”, conta Magnus.
No plantão – O interesse de Magnus pelo assunto surgiu durante sua especialização em endocrinologia, no final dos anos 1990. Em um plantão noturno, ele recebeu no Hospital São Paulo, na zona sul da capital paulista, um motoboy de pouco mais de 20 anos que chegou caminhando ao pronto-socorro e procurava ajuda porque não tinha conseguido se levantar para trabalhar naquele dia. Contou ao médico que, quando o despertador tocou de manhã, não pôde sair da cama porque suas pernas não mexiam. Magnus suspeitou da história, uma vez que o motoboy já não apresentava mais paralisia. Imaginou que essa fosse mais uma daquelas conversas de quem procura um atestado médico para justificar a falta ao trabalho, fez um rápido exame clínico e dispensou o paciente.
Mas o médico se surpreendeu quatro dias mais tarde ao ver, durante outro plantão noturno, o motoboy retornar ao pronto-socorro. Desta vez sentado em uma cadeira de rodas por causa de outro surto de fraqueza que o impedia de parar em pé. Um exame mais detalhado deixou evidente que havia algo errado. O motoboy apresentava os sinais típicos do hipertireoidismo – os olhos estavam um pouco arregalados, o coração acelerado e a tireoide aumentada. A análise do sangue confirmou que sua tireoide estava produzindo níveis elevados de tri-iodotironina (T3) e tiroxina (T4), hormônios que controlam a produção e o gasto de energia do corpo. Para completar, nos surtos de paralisia o nível sanguíneo de potássio, elemento químico fundamental para a contração muscular, se encontrava abaixo do normal.
Os sintomas correspondiam aos de paralisia temporária hipocalêmica tireotóxica – que, como diz o nome, é marcada por redução na taxa sanguínea de potássio (hipocalemia) e de hipertireoidismo, também chamado de tireotoxicidade. Exceto por um detalhe. Esse tipo de paralisia, até então, havia sido descrita em japoneses e chineses. E o motoboy era brasileiro, mulato, com uma provável mistura de genes europeus e africanos. “Na época nos custava acreditar que ela pudesse ocorrer na população ocidental”, diz Magnus.
Com os dados em mãos, ele procurou o endocrinologista Rui Maciel, que nos anos 1980 havia descrito um caso semelhante, e propôs que investigassem a causa genética do problema, que poderia ser mais comum do que se acreditava. Magnus pensou: se essa complicação lhe havia escapado num primeiro momento, talvez também tivesse passado despercebida a outros. Ele consultou endocrinologistas e examinou os casos de paralisia atendidos no Hospital São Paulo nos anos anteriores. Encontrou alguns semelhantes ao do motoboy e os convidou a passar por uma reavaliação.
De 1998 a 2004, Magnus e Maciel reuniram outros 24 casos. De todos, só quatro eram descendentes de japoneses. A maioria era de origem ocidental: 10 eram brancos, oito mulatos, dois negros e um ameríndio, relataram os pesquisadores em 2004 nos Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia. Eram evidências suficientes para desfazer a crença de que esse era um problema quase exclusivo de japoneses e chineses.
(Fasesp - Ricardo Zorzetto)
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