Cão pode ser chave para entender doença genética

O golden retriever Ringo parece ser imune à distrofia muscular, embora carregue a mutação da moléstia. Animal, acompanhado por geneticistas da USP, não tem problemas para andar, ao contrário dos seres humanos afetados.


"Não é possível, esse cachorro não tem nada! Olha como ele corre", espantou-se Anderson Oliveira, 14, ao conhecer Ringo, um golden retriever de sete anos.

O cachorro tem distrofia muscular, mesma doença degenerativa que tirou os movimentos do jovem. Contrariando todos os padrões de evolução da moléstia, o animal não tem problemas para se movimentar. Testes em laboratório revelaram que ele é capaz de pular, correr e andar quase tão bem quanto um animal sem distrofia muscular.

Para os cientistas, essa é a primeira vez que um cão com total ausência de distrofina -proteína que contribui para a firmeza das fibras musculares e cuja ausência causa a distrofia- consegue manter atividades físicas em níveis tão intensos.

Por conta disso, um time de pesquisadores da USP agora esquadrinha cada detalhe de seu DNA, em busca de uma pista do que poderia estar provocando a resistência aos efeitos da doença.

Também estudando cães, a mesma equipe acaba de testar com sucesso o uso de células-tronco para fortalecer os músculos afetados pela distrofia. Nesse aspecto, os bichos também são cruciais.

"A distrofia dos cachorros é causada por um defeito no mesmo gene que causa a distrofia de Duchenne [tipo mais comum e mais grave da doença] em seres humanos. Se nós formos capazes de curar esses animais, então nós também curaremos os meninos", disse à Folha a geneticista Mayana Zatz.

A cientista dirige o Centro de Estudos do Genoma Humano, que realiza o mapeamento genético de Ringo. Ele e outros 16 golden retrievers fazem parte do projeto Genocão, um canil na USP onde efeitos e tratamentos da distrofia são estudados.

Conhecida como GRMD (sigla para distrofia muscular do golden retriever, em inglês), a doença é relativamente comum nessa raça. Ela é provocada por um defeito num gene do cromossomo X, assim como a distrofia dos seres humanos.

Cientistas veem indícios de que o "segredo" de Ringo também possa estar ligado a uma alteração nesse cromossomo. Isso porque o cachorro conseguiu passar adiante essa "proteção" para pelo menos um de seus filhotes.

Fama

A singularidade de Ringo fez com que ele virasse uma espécie de celebridade entre os geneticistas do mundo todo. A história já foi abordada em diversos congressos e apresentada em periódicos científicos internacionais.

Apesar da aura promissora, os pesquisadores daqui também pedem cautela quanto aos resultados dos estudos com o animal. "Ainda falta um longo caminho para dizermos exatamente o que torna o Ringo desse jeito", alerta Zatz.

Terapia com células-tronco já mostra resultados

Embora as pesquisas com Ringo estejam caminhando, o que realmente animou os cientistas nos últimos meses foram os resultados das terapias com células-tronco em cachorros com distrofia.

Eles acabaram de comprovar a segurança do método, que inclusive já mostrou resultados positivos: um dos cachorros conseguiu melhorar a composição muscular.

O trabalho foi o projeto de doutorado de Natassia Vieira, que é orientada pela geneticista Mayana Zatz na USP. Ela injetou células-tronco retiradas do tecido adiposo de seres humanos -gordura vinda de lipoaspiração- em um grupo de seis cachorros com distrofia muscular.

"Mesmo sendo de humanos, não houve rejeição às células no organismo dos cachorros. E o melhor: sem usar imunossupressores [medicamentos para evitar rejeições]", disse Vieira.

O melhor resultado aconteceu quando os cachorros receberam injeções na corrente sanguínea: de algum modo, as células-tronco "perceberam" que deveriam se transformar em músculos. Com alta taxa de sucesso.

Essas novas células permaneceram no organismo por até seis meses após a última aplicação. Isso indica, segundo Zatz, que uma eventual terapia precisaria ser reaplicada pelo menos com essa frequência.

"Já provamos que o método é seguro. Agora precisamos ampliar a quantidade de cachorros para, então, podermos pensar em testes com humanos", completou.

Segundo ela, no entanto, as pesquisas podem esbarrar na falta de estrutura: "Precisamos de um espaço maior e mais apoio para o canil, que é muito caro".

(Giuliana Miranda - Folha de SP)

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