Pesquisadores estão achando moléstias desconhecidas no interior da Paraíba; casamento consanguíneo é a causa. União entre primos em alguns municípios pode corresponder a 40%; ainda há resistência a abandonar a prática.
A bióloga paulistana Silvana Santos foi para o Nordeste há cerca de uma década por causa da sua vizinha. Ela quis entender a origem da misteriosa doença da moradora da casa ao lado.
Como relatava a própria mulher, a moléstia era comum na sua cidade natal, Serrinha dos Pintos, no sertão do Rio Grande do Norte. Santos descobriu no Nordeste mais 70 casos de uma doença até então desconhecida, a síndrome Spoan, que paralisa os membros inferiores e afeta a visão. Era o mesmo mal de sua vizinha.
Depois de descrever a Spoan pela primeira vez em artigo científico de 2005, a bióloga encontrou outros problemas genéticos no sertão, causados por um mesmo motivo: o casamento consanguíneo entre primos.
Em Serrinha dos Pintos, 32% dos casamentos envolvem primos de primeiro e segundo grau. Todos os afetados pela síndrome são descendentes de um ancestral comum, que chegou à região há mais de século.
"As famílias conhecem a sua árvore genealógica, mas a maioria não aceita que as doenças genéticas são causadas pelos casamentos com pessoas do mesmo sangue", afirma a pesquisadora.
Hoje, Santos é professora da UEPB (Universidade Estadual da Paraíba), instituição à qual se vinculou de tanto estudar a região.
Em família
Os casamentos consanguíneos passam dos 40% em algumas cidades paraibanas. A situação é mais grave no sertão, onde muitas doenças ainda não são reconhecidas como de origem genética.
São os agentes de saúde da região (cada um cuida de cerca de 500 pessoas) que registram, numa base de dados, a incidência de deficiências. "Mas ninguém analisa os dados para investigar causas das doenças", diz Santos.
Diagnóstico
De acordo com a médica Paula Medeiros, da UFPB (Universidade Federal da Paraíba), muitos pacientes recebem diagnóstico errado. "Há médicos que relatam retardo mental em casos de mucopolissacaridose [doença metabólica causada por deficiência de enzimas], sem avaliar se há mais casos na família e qual é a origem do problema", diz ela.
Por isso, o trabalho dos pesquisadores está sendo comemorado por funcionários de alguns municípios da região. É o caso de Maria do Socorro Lucena, secretária municipal de Saúde de Queimadas, uma das cidades estudadas, onde uma nova doença genética foi identificada.
De acordo com Lucena, os recursos públicos para a saúde da sua cidade, que tem 40 mil habitantes, são suficientes apenas para o atendimento "básico". E só. "Consigo atender partos, casos de tiro, tratamento de hemodiálise, esse tipo de coisa", diz.
Além de evitar que mais pessoas padeçam de doenças evitáveis causadas por consanguinidade, o aconselhamento genético sai mais barato aos cofres públicos.
No caso dos pacientes de mucopolissacaridose, que traz problemas motores, de crescimento e até mentais, o tratamento de um tipo da doença pode chegar a R$ 100 mil por mês, por paciente.
Hoje, seis portadores que vivem no sertão da Paraíba estão em tratamento no hospital da UFPB, aos cuidados da médica Paula Medeiros.
Faz-tudo
O trabalho deles começa já na prospecção de casos, em parceria com os agentes de saúde. São também os cientistas que realizam o mapeamento genético e identificam as possíveis doenças hereditárias, posteriormente divulgadas à comunidade acadêmica em congressos e em artigos científicos.
O processo todo leva, em média, três anos, também por causa das dificuldades estruturais. Hoje, um mapeamento genético no Brasil só pode ser feito nas regiões Sul e Sudeste, que contam com laboratórios para isso.
"Eu oriento as pessoas sobre os riscos de nascimento de deficientes quando os pais são um casal de primos", diz Santos. A ideia, de acordo com ela, é informar os jovens em idade reprodutiva.
Mas essa não é uma aproximação simples. A descrença nos cientistas, e um certo fatalismo, ainda são comuns. "Não acredito nessa coisa de doença causada por casamento entre primos", diz uma moradora do município Olho d'Água, próximo de Queimadas. Filha de primos e casada com um primo, ela tem três dos seus cinco filhos surdos. "Tive filhos surdos porque Deus quis."
Grupo propõe elo entre tradição e judaísmo
O casamento entre primos na região Nordeste pode ter origem no judaísmo. A hipótese é de alguns dos pesquisadores da UEPB, que veem semelhanças entre costumes da área e a tradição judaica.
A influência pode ter tido origem nos séculos 16 e 17, quando os marranos ou cristãos-novos, conversos de origem judaica, vieram para o Brasil na esteira da colonização portuguesa.
Apesar de terem sido forçadamente convertidos ao cristianismo, alguns costumes do judaísmo teriam se mantido na região até hoje. O mais óbvio deles é a endogamia, ou seja, o hábito de só se casar com membros da própria comunidade. No judaísmo mais tradicional, isso acontece para evitar a mistura étnica com indivíduos não judeus, como forma de preservar o grupo.
Usos menos óbvios do cotidiano, no entanto, talvez remetam também ao judaísmo. Por exemplo, o hábito de comer "jabá" (carne seca com pouco sangue) aos sábados. Isso lembraria a proibição, presente no Antigo Testamento, do consumo de carne com o sangue do animal, bem como o dia sagrado do judaísmo, que é o sábado.
Menos não é mais
Controvérsias étnicas à parte, outro dado preocupante levantado pelos pesquisadores é que a quantidade de pessoas com deficiência parece aumentar na medida em que o tamanho do município diminuiu.
A conclusão é de um estudo coordenado pelo geneticista Mathias Weller, da UEPB. Ele fez uma análise dos dados do Datasus (Sistema de Informação da Atenção Básica do SUS) sobre a distribuição de indivíduos com deficiência em 223 municípios da Paraíba.
Weller notou que as cidades mais interioranas do Estado - que também são as menos populosas - têm em média 1/6 mais deficientes em comparação com a área litorânea.
(Sabine Righetti - Folha de SP)
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