Tremores recorrentes ajudaram a moldar o relevo nordestino
© João alexandrino
Falésias no Rio Grande do Norte
O Nordeste brasileiro é terra de agitos, não só por causa do Carnaval e outras festividades. De acordo com pesquisadores do Rio Grande do Norte e de São Paulo, os terremotos que de vez em quando sacodem a região estão longe de ser novidade: já aconteciam muito antes de existir gente no planeta, e ocorrem até hoje. O geólogo Francisco Hilario Bezerra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), recorre à cultura popular para ressaltar a concepção errada que impera sobre os movimentos do solo brasileiro: “Vai, vai, vai, suba aqui na minha moto/ Vem, vem, vem, aqui não tem terremoto”, diz a música Insolação do coração, de Carlinhos Brown, interpretada por Claudia Leitte. Segundo o pesquisador, não é nada disso. No Brasil, sobretudo em sua região natal, tem muito terremoto.
“O Nordeste é o lugar do Brasil onde mais acontecem terremotos”, diz Bezerra, “não se sabe bem por quê”. Os resultados do grupo da UFRN deixam claro que terremotos têm sido comuns na região nos últimos 400 mil anos. Além de explicar o relevo nordestino, esse conhecimento pode também ter utilidade prática direta, como orientar a engenharia civil. “Se determinamos que uma zona é caracterizada, há milhares de anos, por terremotos de magnitude 5, por exemplo, é preciso que as construções resistam a esses tremores”, explica o geólogo.
A caracterização tectônica da região faz parte de um projeto mais amplo coordenado pelo geólogo Reinhardt Fuck, da Universidade de Brasília, no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Estudos Tectônicos. Parte do trabalho foi feita por Francisco Cézar Nogueira durante o doutorado sob orientação de Bezerra. Ele estudou uma falha tectônica com comprimento de 35 quilômetros por onde corre o rio Jundiaí, que corta a cidade de Natal, e viu que, mais ou menos a cada 16 mil anos, os movimentos dessa ruptura no terreno causam tremores, segundo artigo publicado este ano no Journal of Geodynamics.
A principal fonte de informações para Nogueira foi a areia que preenche as rachaduras profundas do solo. Como matéria-prima para análises geológicas, a areia pode ser desafiante. As zonas arenosas em climas áridos são pouco propensas à preservação de fósseis e por isso são difíceis de datar pela técnica mais comum, de carbono-14. A dificuldade foi resolvida por uma associação com o laboratório de Sonia Tatumi, da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec-SP), especialista em análises de luminescência opticamente estimulada. A técnica mede a posição dos elétrons dentro dos grãos de quartzo da areia para avaliar sua idade. A luz solar atrai esses elétrons para a camada mais externa, mas eles voltam para o interior do grão quando a camada de areia é enterrada. Com esse método é possível estimar há quanto tempo o grão está no subsolo, dentro de um máximo de 1 milhão de anos. Ao pressupor que a areia infiltrada na falha Jundiaí foi soterrada em consequência da rachadura, as datações permitiram estimar que ela se formou cerca de 100 mil anos atrás. E esteve ativa desde então, o que não se podia saber observando os registros históricos. Durante os 200 anos em que há histórico sobre a atividade sísmica no Nordeste, não foram registrados tremores fortes na falha Jundiaí, o que poderia levar a crer – incorretamente – que ela não está ativa.
Solo movediço – Estudar falhas não é a única forma de investigar a sismologia de uma região. Mesmo sem ter acesso direto à falha que causa tremores em determinada área, o grupo da UFRN usa também outras alterações no solo para inferir movimentos passados. Um desses fenômenos é a liquefação, que acontece quando uma mistura de água e areia presa no subsolo é submetida a grande pressão, como a gerada por um terremoto. Bezerra ajuda a compreender fazendo uma analogia com a pressão que se cria quando uma garrafa de champanhe é sacudida. “A rolha, que no caso do solo pode ser uma rocha, impede a mistura de se expandir e a pressão aumenta até que estoura”, explica. No caso do champanhe é festivo, desde que a rolha não atinja alguém; mas quando grãos de quartzo se agitam com um terremoto e são ejetados, junto com a água, depois que a rocha se rompe, o resultado é destruição e, hoje, prédios demolidos.
As marcas desse tremor depois se solidificam e ficam registradas: é o que Elissandra Moura-Lima tem estudado durante seu trabalho de doutorado. As testemunhas providenciais aí são seixos por cima da areia. Mais uma vez, Bezerra recorre a uma imagem para deixar clara a instabilidade dessa disposição: “Imagine uma gelatina, dessas que a gente come, com um ferro de passar em cima”. Basta um tremor para acabar com o equilíbrio e fazer o ferro afundar. E provavelmente fará isso de lado, descendo pela gelatina na posição que oferece menos resistência. É o que acontece com os seixos: quando são flagrados debaixo da superfície em posição vertical, os pesquisadores podem inferir o trajeto que percorreram. E, mais uma vez com ajuda da luminescência, estimar quando aconteceram esses movimentos.
Elissandra usou também uma espécie de tomografia dos sedimentos conhecida como GPR, sigla em inglês para radar que penetra o solo (ground penetrating radar). Isso lhe permitiu caracterizar, no vale do rio Açu, parte da bacia Potiguar, as estruturas em domo formadas quando os seixos penetram solo adentro e empurram a areia para cima. Mapear essas deformações do solo no contexto da rede de falhas que percorre a região permite estimar o momento e a magnitude de tremores que ocorreram há milhares de anos. Um tremor de magnitude 5 ou 6, por exemplo, causa alterações num raio de dois quilômetros. No vale do rio Açu, o grupo mostrou que terremotos já eram recorrentes há 400 mil anos. As falhas que correm por baixo desse vale são, por isso, fortes candidatas a responsáveis por boa parte da atividade sísmica do passado na bacia Potiguar.
(Fasesp - Maria Guimarães)
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