As aves se adaptaram à escassez de alimento e de oxigênio durante o voo
Carlos Fioravanti
Muitos fósseis encontrados na China nos últimos anos estão ajudando a entender melhor como e quando as aves surgiram e começaram a voar. Um dos mais recentes, apresentado em setembro de 2009 na Nature, é o Anchiornis, animal com penas e quatro asas que viveu há cerca de 150 milhões de anos, 10 milhões de anos antes do Archaeopteryx, até agora visto como a ave mais antiga.
O Anchiornis, ao menos até aparecer outro fóssil mais antigo, iniciou a formação de um grupo de animais caracterizados principalmente pela habilidade de voar, às vezes milhares de quilômetros, como as aves migratórias. “Hoje, 90% das espécies de aves voam”, diz o biólogo José Eduardo Bicudo, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e principal autor do livro Ecological and environmental physiology of birds, publicado em fevereiro pela Universidade de Oxford, Inglaterra. Seus estudos, somados aos de outros especialistas, indicam que as aves conseguiram voar não só porque ganharam asas e penas próprias para o voo, mas também porque adquiriram adaptações fisiológicas que lhes permitem voar durante semanas em altitudes elevadas, onde há pouco oxigênio, bem acima do que o ser humano consegue chegar, a não ser por meio de avião.
“O princípio fisiológico é simples: quanto menos carga levar durante a viagem, melhor”, diz Bicudo. Antes da partida, os músculos que ajudam a voar ganham volume, mas depois atrofiam à medida que a viagem está correndo. Outra peculiaridade é a eficiência digestiva: “As aves migratórias podem aumentar ou reduzir a produção de enzimas digestivas, se têm muito ou pouco alimento. Se não têm alimento, as células do sistema digestivo morrem e o trato digestório encolhe à metade do volume inicial. Quando acaba o jejum, o estômago, os intestinos e o fígado fazem novas células e voltam ao volume normal”.
Ver aves de rapina planando sobre a cordilheira do Himalaia, a 9 mil metros de altitude, pode ser um belo espetáculo para nós, embora para as aves provavelmente seja desconfortável: em altas altitudes, faz muito frio e a concentração de oxigênio é baixa. “Elas superam as dificuldades por meio da eficiência respiratória”, conta Bicudo. Em um artigo publicado em 2006 na Integrative and Comparative Biology, Douglas Altshuler, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, e Robert Dudley, do Smithsonian Institute, descrevem os mecanismos fisiológicos que permitem o voo em altitudes elevadas – e vão além dos sacos aéreos, bolsas conectadas aos pulmões e aos ossos que deixam o esqueleto mais leve. Os pulmões das aves extraem quase todo o oxigênio do ar e a hemogloblina delas tem maior capacidade de ligar-se e de desligar-se do oxigênio que a humana.
Conhecidas pelo olhar arguto, as aves podem ter também olfato razoavelmente apurado. “Muitas espécies de aves marinhas detectam dimetilsulfato, substância gerada por peixes em decomposição, que lhes serve para a navegação e procura de alimentos. Os albatrozes têm um voo relativamente aleatório até encontrar um cardume de peixes que exala dimetilsulfato”, relata Bicudo. Além do olfato desenvolvido, embora por décadas tenha sido desconsiderado, outro conceito que pode surpreender é que o cérebro de mamíferos e o de aves, mesmo morfologicamente bem diferentes, têm estruturas funcionais equivalentes – uma conclusão que põe por terra a expressão cérebro de galinha para designar pessoas pouco inteligentes. “Os pombos podem memorizar 400 padrões de cores”, argumenta Bicudo. É também por meio do sistema nervoso que as aves detectam o eixo magnético da Terra e identificam o norte ou o sul.
Do deserto ao polo - Essas peculiaridades do voo, que nem os especialistas conheciam até pouco tempo atrás, explicam como as aves se espalharam tanto, ocupando todo o planeta e adaptando-se a ambientes tão diferentes quanto desertos e polos gelados. Esse grupo exibe hoje espécies tão distintas quanto uma harpia, cujas asas abertas podem tomar 2,5 metros, e o canário-da-terra, menor que a mão de um adulto.
Os fósseis mais antigos confirmam que as aves originaram-se dos dinossauros e emergiram nas regiões equatoriais, de baixas latitudes, como a China e o Brasil – embora aqui o solo úmido das florestas não tenha preservado os fósseis. Bicudo acredita que muitas espécies que hoje passam por nosso continente como a águia-pescadora, uma das 33 espécies migratórias já vistas nos cerrados paulistas, se originaram por aqui. Os beija-flores, que ele estuda há anos, exemplificam essa irradiação: a América do Sul abriga cerca de 90 espécies, a América Central não mais de 15 e a América do Norte, cinco ou seis. “O Brasil é um celeiro de beija-flores”, diz ele.
Em 2001, a bióloga Claudia Vianna e ele verificaram que o músculo peitoral do beija-flor-rabo-de-tesoura, que corresponde a um terço do volume corporal, produz uma proteína chamada HmUCP, que permite à ave se reaquecer rapidamente e atingir a temperatura mais confortável num período de 30 a 40 minutos, antes de levantar voo. À noite, depois de um dia de voo incessante, o beija-flor passa por uma brutal queda de temperatura corporal: de 40oC para próximo da temperatura ambiente – às vezes, até 15o C. O drama é o dia seguinte: ao acordar, precisa atingir a temperatura que lhe permita alçar voo e recomeçar a busca por alimento. A partir daí as asas começam a bater em média 700 vezes por minuto, e o coração, 1.400 vezes. Até esse momento proteínas equivalentes tinham sido identificadas apenas em mamíferos (ver Pesquisa Fapesp nº 69, outubro de 2001). Bicudo e sua equipe não avançaram muito com essa linha de trabalho com os beija-flores, já que conseguir as autorizações para recolher amostras de sangue se mostrou mais difícil do que pegar os animais, mas em 2005 Denise Loli e ele encontraram proteínas semelhantes, que ajudam a esquentar o corpo, em mamangavas do gênero Bombus e em Melipona, uma abelha-indígena sem ferrão, indicando que os animais que voam – aves, insetos e morcegos – podem guardar muitos mecanismos fisiológicos em comum.
Fasesp.
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