Pesquisadores mapeiam rede de células humanas.
Todos sabem que o desenvolvimento de um ser humano, da primeira célula (o zigoto) ao indivíduo adulto, é um processo complicado. Mas quão complicado? Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) dá uma medida mais precisa dessa complexidade e oferece pistas que, no futuro, podem ajudar a tratar algumas doenças.
O estudo foi conduzido por uma equipe de físicos que decidiu explorar aplicações na biologia das ferramentas usadas mais comumente em suas áreas de origem. Daí a abordagem tão incomum: eles decidiram enxergar o desenvolvimento humano como se fosse uma rede de computador, como a internet.
Na etapa inicial do trabalho, Viviane Galvão, que na época fazia doutorado na Universidade Estadual de Feira de Santana e agora é pesquisadora do Instituto de Física da UFBA, vasculhou a literatura científica em busca de todas as referências sobre tipos celulares existentes no corpo humano, fosse qual fosse a etapa de desenvolvimento. Foram analisados estudos feitos com embriões e fetos abortados espontaneamente em diferentes estágios da gestação. Ela também consultou pesquisas que identificavam os tipos celulares encontrados em indivíduos já formados, do nascimento à morte.
Ao todo, a equipe identificou 873 diferentes tipos celulares. O número pode causar estranheza a alguém versado em embriologia humana, afinal se sabe que no corpo de uma pessoa adulta há cerca de 200 tipos de células. O que explica essa diferença é que o trabalho feito pelo grupo da Bahia em parceria com pesquisadores do Ceará e dos Estados Unidos leva em conta as células de tecidos que existem apenas durante certas etapas do desenvolvimento e depois desaparecem, como ocorre com a placenta, encontrada apenas durante a gestação.
Depois de levantar esse catálogo tão completo quanto possível, o grupo usou modelos computacionais para procurar as conexões entre os diferentes tipos celulares na tentativa de estabelecer quais eram os precursores de cada tecido e de criar uma rede de relações entre todas as células. Surgiu então o que eles chamaram de rede de diferenciação celular humana (NHCD, na sigla inglesa), descrita em detalhes num artigo publicado em março deste ano na revista PNAS.
Caminhos múltiplos – Nessa fase do trabalho surgiu a primeira surpresa: os resultados contradiziam os de estudos anteriores. Em vez de formar um padrão que lembraria mais uma árvore, na qual o tronco é formado pelas células precursoras e os galhos por suas derivadas, surgiu um desenho bem diferente: as ligações eram mais complexas, com caminhos não necessariamente lineares e cheios de conexões intermediárias que, em certos pontos, lembravam uma teia de aranha. “Vimos que a célula A podia não só se transformar na célula B, mas também na célula C”, conta Viviane. “Havia diversos caminhos possíveis para a formação de um dado tipo celular.”
Esse mapa de diferenciação celular produz um padrão de conexões que pode ser estudado com as ferramentas matemáticas usadas para estudar redes como a internet. Mas, mais importante, segundo os pesquisadores, é que esse trabalho permite uma visão sistêmica da diferenciação celular.
Médicos e biólogos que investigam um órgão como o coração costumam conhecer a fundo as células cardíacas e suas precursoras, do mesmo modo que um pneumologista sabe muito mais sobre as células respiratórias do que sobre as demais. “Com essa rede à disposição, dá para perceber: ‘Ah, essa célula digestiva também aparece no sistema respiratório, algo que quem trabalha com uma área específica poderia não saber”, explica Viviane.
O padrão formado pela rede também pode orientar a busca por substâncias que permitam controlar melhor os processos de diferenciação celular – um dos grandes desafios da pesquisa com células-tronco, conhecidas pelo vasto potencial de originarem diferentes tecidos no organismo diante do estímulo correto. “A gente pode observar, na rede, que um tipo celular A é mais comumente originado de uma célula B, mas também pode surgir a partir de um tipo C, então isso estimula o pesquisador a buscar novos fármacos que possam induzir essa diferenciação específica”, diz a pesquisadora da UFBA.
Visão integrada - Os estudos com células-tronco, aliás, são os que mais podem se beneficiar dessa visão mais integrada da diferenciação celular. Enquanto desenvolvia a rede de diferenciação celular, Viviane Galvão também trabalhou em paralelo na modelagem de diversas redes mais específicas voltadas para processos ligados a doenças. Um dos trabalhos buscava justamente retratar o que acontece, em termos de regeneração cardíaca, quando um coração danificado pelo parasita causador da doença de Chagas recebe uma injeção de células-tronco adultas. O tratamento foi desenvolvido pelo grupo do médico Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) da Bahia, e já mostrou resultados promissores, embora o mecanismo exato envolvido na ação das células-tronco ainda não esteja claro.
Um dos trabalhos de Viviane, que teve participação do pesquisador da Fiocruz, tentou, por vias teóricas, jogar alguma luz sobre essa questão. Os resultados sugerem algumas explicações dos motivos pelos quais o tratamento funciona e podem, no futuro, ajudar a indicar a quantidade ideal de células-tronco a ser usada, embora muitos mecanismos biológicos envolvidos na recuperação do coração ainda estejam longe de ser esclarecidos.
Viviane também trabalhou em modelagens similares para outras doenças, como certos tipos de câncer, e afirma que os resultados servem, por exemplo, para prever os caminhos que a metástase pode tomar. “Ao verificar o parentesco entre os diferentes tipos celulares, conseguimos entender por que um câncer específico invade um órgão, e não outro”, diz.
Ela e seus colaboradores pretendem agora estabelecer a rede que caracteriza a resposta imunológica e a interação celular de outras doenças parasitárias, como tuberculose e malária. Talvez médicos e biólogos inicialmente vejam esses achados com reserva. Afinal, ainda não se sabe com segurança se todos os tipos de células humanas já foram identificados. E uma rede incompleta pode levar a conclusões incorretas.
Fasesp.
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