Testes recentes mostram que células-tronco não fazem tudo o que se esperava, mas indicam novas abordagens de pesquisa
© Nissim Benvenisty/PLOS/Wikimedia Commons
Células-tronco embrionárias: primeiros testes em seres humanos devem ocorrem ainda neste ano
Por um momento, a poesia tocou a ciência. Marco Antonio Zago, professor e pró-reitor de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), venceu a solenidade de uma apresentação no teatro da Faculdade de Medicina da USP e mostrou um trecho de uma peça de Shakespeare sobre um remédio capaz de insuflar vida nas pedras, de fazer qualquer um dançar alegremente e Carlos Magno escrever versos de amor. “Shakespeare era um visionário.
Esse remédio só podia ser as células-tronco!”, concluiu Zago, com humor. No dia 13 de agosto, uma sexta-feira, ele e outros pesquisadores – uns mais cautelosos, outros mais ousados – compartilharam as alegrias, as decepções e as perspectivas dos trabalhos em andamento com as células-tronco, vistas com expectativa intensa nos últimos anos por serem capazes de se diferenciarem em outros tipos de célula do organismo. Portanto, pensava-se, poderiam trazer o tratamento sonhado para muitas doenças que a medicina não conseguia resolver.
Nem tudo saiu como esperado, mas houve avanços. Pesquisadores italianos conseguiram restabelecer a visão de 112 pessoas usando células-tronco do próprio olho, como detalhado em julho deste ano na New England Journal of Medicine. Outros experimentos, como os realizados no Instituto Butantan, em São Paulo, ajudaram a reduzir lesões nos olhos de animais de laboratório e a criar uma fundamentação científica que permite o uso experimental dessa abordagem em seres humanos. Porém, nenhum dos 127 testes clínicos registrados com células-tronco para tratar doenças cardíacas funcionou. Traindo as expectativas, as células-tronco retiradas da medula óssea e implantadas no coração não se transformaram em células musculares nem ajudaram a restaurar a capacidade de bombeamento do coração. Em setembro, Gilson Feitosa, professor da Universidade Federal da Bahia, apresentará em um congresso em Estocolmo, na Suécia, os resultados do primeiro teste clínico feito no Brasil, em portadores de doença de Chagas, que também terminou com ganhos muito modestos.
“Se esses tratamentos tivessem funcionado, teríamos dificuldade para explicar, por que as células-tronco [usadas com finalidades terapêuticas] não ficam onde deviam ficar”, comentou José Eduardo Krieger, pesquisador do Instituto do Coração (InCor) da Faculdade de Medicina da USP (ver reportagem Efeito inesperado, em Pesquisa FAPESP). Segundo ele, as células-tronco – mesmo as injetadas diretamente no coração – espalham-se pelo corpo, e raramente ficam no órgão que deveriam ajudar a consertar. Krieger amenizou esse problema combinando células-tronco mesenquimais, extraídas de tecido adiposo, com substâncias retiradas do próprio organismo que funcionaram como cola. Essa abordagem apresenta outra vantagem: não faltam voluntários para doarem esse tipo de células, obtidas por meio de lipoaspiração.
Aplicadas sozinhas e diretamente no músculo cardíaco, somente 7% das células mesenquimais permaneceram no coração de ratos que sofreram um infarto induzido. Esse total aumentou para 14% quando as células estavam combinadas com fibrina, uma proteína relevante na coagulação sanguínea, e para 25% quando em parceria com o colágeno, proteína que ajuda a manter as células unidas, como descrito em um artigo publicado em agosto na revista PLoS ONe. “Aparentemente, as células ajudaram na angiogênese [formação de novos vasos sanguíneos] e na cicatrização do coração”, disse Krieger. “Quais mecanismos levam a esses efeitos? Não sabemos. Estamos mapeando nossa ignorância. Saímos da fase da inocência, em que víamos as células-tronco como coringas capazes de fazer tudo, para uma fase de surpresa, em que vemos efeitos e não sabemos explicar com precisão, e de elaboração da lógica científica que nos permita avançar nos estudos clínicos.”
Há muita pesquisa em andamento – a maior parte ligada à Rede Nacional de Terapia Celular, que reúne oito centros de tecnologia celular e 52 laboratórios de pesquisa – e aos poucos emergem argumentos para testes contra outras doenças em seres humanos. Também na Faculdade de Medicina da USP, por exemplo, a equipe de Irene Noronha reuniu evidências experimentais que embasam os testes para tratar insuficiência renal crônica em seres humanos. Neste caso, as células-tronco são extraídas de outra fonte, o líquido amniótico. Segundo ela, em nove dias, enquanto as células-tronco mesenquimais geram 400 mil células, as do líquido amniótico geram 4 milhões. Na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, a equipe de Valdo Silva, por meio de seus estudos em animais, construiu uma argumentação que deve facilitar a aprovação dos testes de células-tronco para tratar hipertensão arterial, uma doença crônica que afeta um em cada quatro adultos no Brasil.
“A primeira fase da pesquisa com células-tronco, a das células mononucleares, extraídas da medula óssea, está chegando ao fim. Era necessária por ser a solução mais simples e barata, portanto aplicável ao Brasil”, comenta Antonio Carlos Campos de Carvalho, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Nacional de Cardiologia (INC). Segundo ele, algumas aplicações podem malograr, mas outras podem avançar. “Os japoneses e cubanos têm visto que as células-tronco mononucleares têm melhorado a angiogênese e evitado a amputação de pessoas com pé diabético”, exemplifica. A segunda fase é a das células mesenquimais, que necessita de tecnologias mais refinadas. Olhando mais à frente estão outros dois tipos de células tronco: as embrionárias, ainda sem nenhum teste em seres humanos (uma empresa dos Estados deve começar o primeiro ainda neste ano), e as tecido-específicas, produzidas nos próprios tecidos, cujo isolamento e cultivo ainda desafiam os cientistas. “As células-tronco de medula são seguras, mas ninguém sabe se funcionam, enquanto as embrionárias podem se transformar em qualquer tecido adulto, mas podem formar tumores quando não diferenciadas”, comentou Lygia Pereira, da USP. O que faz uma célula-tronco se diferenciar – em vários tipos de células em um tecido ou em apenas um em outro – é outro mistério.
A troca de informação entre equipes de pesquisa básica, de estudos em animais e de testes clínicos marca um raro esforço nacional em fazer o conhecimento chegar logo à aplicação, caracterizando a chamada pesquisa médica translacional (ver reportagem Obra Coletiva, de Pesquisa FAPESP). Delineia-se uma interação também com órgãos do governo. Em sua apresentação, Dirceu Barbano, diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), comentou que uma das prioridades deste ano é a regulamentação das pesquisas e dos novos produtos na área de células-tronco. “Em nenhum momento, a atividade de vigilância sanitária deve concorrer com a ciência, ambas devem se amparar mutuamente”, comentou. “O equilíbrio não é fácil, mas, se o diálogo não avança, há insegurança no ambiente de pesquisa e intransigência das entidades regulatórias”. As empresas brasileiras, que anos atrás Zago afirmou serem indispensáveis para levar adiante as inovações em células-tronco, ainda não apareceram.
Nos Estados Unidos, equipes médicas de empresas trabalham em paralelo às universidades à frente de testes clínicos. É o caso da Osiris Therapeutics, cuja equipe médica trabalha em um teste clínico fase II (de eficácia) de células-tronco para tratar diabetes juvenil, ou da Geron, com os primeiros testes de células-tronco embrionárias. Outra empresa, a Regenecell, já oferece tratamento para 29 doenças, do autismo ao câncer, embora a terapia celular ainda seja experimental e com poucas aplicações já aprovadas. Mundo afora, a angústia das pessoas por tratamento para doenças que a medicina não consegue resolver levou ao chamado turismo das células-tronco, descrito na Nature Biotechnology em dezembro de 2009, com tratamentos cujo custo pode chegar a US$ 50 mil. “Por sorte o Brasil não entrou nesse mapa", celebrou Lygia Pereira. Em junho, a Sociedade Internacional de Pesquisa em Células-Tronco (ISSCR, na sigla em inglês) apresentou um site (www.closerlookatstemcells.org) para informar pacientes, suas famílias e médicos sobre o que as células-tronco são, podem e poderiam fazer, depois de as pesquisas em andamento indicarem que são realmente seguras e efetivas.
Carlos Fioravanti
Edição Online - 18/08/2010
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