Do fogo ao etanol celulósico, o homem continua dependendo das plantas para obter energia
Um dos portais da biotecnologia para a civilização se abriu quando o homem descobriu que a madeira podia ser queimada de forma controlada e produzir calor. Naquela época é possível que ele já conhecesse as propriedades incríveis da madeira e as possibilidades de construir com ela. Depois de ter aprendido como construir com a madeira, o homem começou a se deslocar cada vez mais rapidamente por rios e mares. Vieram os descobrimentos dos continentes, que foram feitos com barcos de madeira movidos pelo vento soprando em velas de pano.
As grandes navegações, no final do século XV e início do XVI, se apoiam numa das partes mais importantes da célula vegetal: a parede celular. Isso porque a madeira, as velas, as roupas e a comida dos marinheiros eram formadas, em grande parte, por parede celular.
As grandes navegações, no final do século XV e início do XVI, se apoiam numa das partes mais importantes da célula vegetal: a parede celular. Isso porque a madeira, as velas, as roupas e a comida dos marinheiros eram formadas, em grande parte, por parede celular.
Desde cedo aprendemos que todas as células das plantas são envolvidas por uma parede feita de celulose. De fato, se retirarmos a água, as paredes celulares representam cerca de 70% do corpo das plantas. Tudo o que fazemos com plantas envolve, em grande parte, a parede celular. A roupa que o leitor está vestindo neste momento provavelmente é feita parcial ou totalmente de parede celular, neste caso, de celulose. Para que o nosso sistema digestivo funcione, a parede celular é fundamental. São os polímeros da parede — e, neste caso, não somente a celulose, mas também as hemiceluloses e as pectinas — que dão sustentação ao bolo alimentar, que faz com que o trânsito intestinal exista. Em outras palavras, sem a parede celular, teríamos diarreia constante! A parede, neste caso, também ajuda a regular a absorção de compostos por nosso sistema digestivo. Por exemplo, ao comermos a nossa salada no início da refeição, estamos forrando o sistema digestivo com uma camada de polímeros de açúcares, principalmente pectinas e hemiceluloses, que limitam a absorção de gordura, açúcares e toxinas em geral. Para mais detalhes, ver meu artigo sobre fibras alimentares em http://msbuckeridge.wordpress.com.
Para as plantas, a função principal da parede celular é dar forma e estrutura às células e tecidos. Numa árvore gigante da Amazônia, são as paredes celulares dos vasos condutores que permitem que a água e os sais minerais cheguem até as folhas do topo. As plantas fazem finos tubos, literalmente feitos de um papel natural, que permitem a condução da água. Só que, para que a água atinja alturas de 20, 30 e até 100 metros, como é o caso das sequoias gigantes do hemisfério Norte, finos tubos de papel não se sustentam sozinhos e é preciso que as fibras estejam posicionadas estrategicamente para manter a árvore em pé. São as paredes celulares dessas fibras que propiciam as propriedades mecânicas que sustentam a planta. A parede celular não é tão simples quanto parece. Não é só um amontoado de moléculas de celulose. Na realidade, a parede celular funciona como um cristal líquido (ver figura acima), desses que temos em nossos relógios. Há vários polímeros que interagem entre si e que têm certa liberdade de movimento. Se não fosse assim, as plantas teriam estruturas rígidas e quebradiças. Não parariam em pé e se esfacelariam.
A molécula de celulose é uma longa cadeia de glicoses que se empacotam formando um cristal chamado de microfibrila. Para formar esse cristal, a água é expulsa de tal forma que 36 moléculas interagem entre si formando um pacote desidratado. Esses cristais (as microfibrilas) são envolvidos por outros polímeros que chamamos de hemiceluloses. Elas são moléculas parecidas com a celulose, mas com a estrutura modificada de tal forma que permitem que mais água esteja presente em maior proporção. As hemiceluloses assim funcionam como a capa de um fio elétrico, envolvendo as microfibrilas. Esse pacote de moléculas de celulose e hemiceluloses fica embebido num gel formado por uma classe de polímeros que chamamos de pectinas. Essas últimas são exatamente o que usamos na nossa geleia no café da manhã. Assim, a proteção da parede contra o ataque de outros organismos é a desidratação do seu coração (a celulose). Isso evita que as ligações químicas entre os açúcares básicos, as glicoses, sejam quebradas por hidrólise, o que requer água para ocorrer.
Sabemos que em vários casos as plantas conseguem desmontar esse complexo. Esse é o caso dos frutos, de várias sementes e em raízes. Se as paredes celulares das folhas e dos ramos das florestas do mundo não fossem degradadas, nós já teríamos uma pilha infindável de celulose que se acumularia até o infinito e o nosso planeta já teria virado um amontoado de folhas e ramos. Isso não ocorre porque microrganismos e também insetos aprenderam durante a evolução como degradar a parede celular. No entanto, há um equilíbrio delicado: esses organismos que possuem a chave para degradar a celulose conseguem fazê-lo apenas até certo ponto — e não são tão eficientes assim quando a planta está viva. Se não fosse assim, teríamos uma condição em que não existiriam mais plantas e tudo seria consumido pelos microrganismos e insetos.
Por que esses microrganismos têm uma capacidade apenas razoável de degradar a celulose? Porque degradar as paredes celulares é extremamente difícil. Geralmente é preciso algo drástico, como a ajuda do fogo, para fazer isso. Para degradá-las de forma controlada, seria necessário que ferramentas específicas fossem usadas. Os únicos organismos que possuem a chave para degradar as paredes são as próprias plantas. Porém, vários microrganismos estão aprendendo essa tarefa. Em ambos os casos, são usadas proteínas chamadas de enzimas, que quebram essas ligações químicas de forma precisa.
Na corrida para conseguir o etanol de celulose, o que queremos é encontrar uma forma de obter a glicose da celulose e, assim, fornecer açúcares para as leveduras fermentarem e produzirem etanol. Vale fazer isto com qualquer planta, milho, cana-de-açúcar, agave, madeiras etc. A ideia tem sido adaptar a estratégia que os microrganismos usam e roubar as ferramentas (as enzimas) de forma a obter os açúcares de que precisamos para fermentar. Esse é um dos grandes desafios tecnológicos da nossa época em relação à parede celular. No caso do Brasil, é o grande desafio de obter bioenergia através da conquista da tecnologia de produção de etanol a partir dos resíduos de cana-de-açúcar (bagaço, palha).
Para nós, brasileiros, é óbvio que, neste momento, usar a cana para produzir etanol celulósico seria a melhor opção. Porém, como cada planta tem paredes celulares diferentes, o que deve ocorrer é que cada país (ou regiões dentro de um país) terá sua própria solução. Assim, a tecnologia do etanol celulósico aparecerá em vários lugares do mundo ao mesmo tempo. O Brasil e os EUA são os principais interessados em desenvolver essa tecnologia e pretendem fazer isso de forma sustentável. Em uma espécie de aliança pan-americana, discutiremos esse tema em agosto deste ano em uma reunião conjunta com os principais pesquisadores brasileiros e norte-americanos da área de plantas e bioenergia (ver www.plantsandbioenergy.com.br). No encontro, exporemos os principais avanços científicos que podem nos levar à produção do etanol celulósico e de outros tipos de energia a partir de plantas.
Fasesp - Marcos Buckeridge
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