Os caminhos do medo

Temores provocados por razões distintas acionam regiões diferentes no cérebro.

Coloque um rato diante de um gato e verá uma das reações mais essenciais à sobrevivência. De imediato, o rato paralisa como se estivesse morto, reduzindo assim o risco de chamar a atenção do seu predador, em geral atraído pelo movimento. Se o perigo continua ou aumenta com a aproximação do gato, o roedor se lança em uma sequência de saltos vigorosos para trás que o fazem voar por uma distância equivalente a algumas vezes o comprimento do seu corpo. O congelamento dos movimentos e a tentativa enérgica de fuga integram o repertório de reações naturais de defesa típicas de situações que despertam o medo.

Surgiram provavelmente há centenas de milhões de anos, com os primeiros répteis que escaparam de seus predadores e se espalharam pelo planeta, e continuam a ser apresentadas por um grupo amplo de animais que inclui os mamíferos – entre eles, os seres humanos. Mas só recentemente, a partir de estudos feitos no Brasil e nos Estados Unidos, constatou-se que as reações que preparam o corpo para lutar ou fugir diante do perigo são disparadas e coordenadas por uma região profunda e primitiva do cérebro: o hipotálamo, estrutura com a forma e o tamanho de uma azeitona situada na base do crânio, à altura do olhos.

Intrigado com o número e a complexidade das mudanças que as reações de defesa disparam no corpo – momentaneamente elevam a pressão arterial, aumentam a atenção e preparam os músculos para agir –, o médico e neuroanatomista Newton Sabino Canteras decidiu se embrenhar há pouco mais de uma década pelos complexos circuitos neurais do hipotálamo. Protegida nos seres humanos pelos hemisférios cerebrais, essa estrutura de pouco mais de dois centímetros de comprimento, um de espessura e quase dois de altura acomoda ao menos 16 conjuntos de células distintos, com conexões entre si, com outras regiões do cérebro e outros órgãos do sistema nervoso central. Ela produz vários hormônios e está associada ao controle da fome, da sede, da temperatura corporal, do sono, do comportamento reprodutivo e da agressividade.

A investigação minuciosa de como esses circuitos se conectam dentro e fora do hipotálamo e a determinação da sequência em que são acionados em situa¬¬ções que colocam a vida em risco, como o ataque de um predador, levaram Canteras e pesquisadores dos Estados Unidos a propor que essa estrutura cerebral desempenha um papel fundamental tanto na geração e na coordenação das reações de defesa despertadas pelo medo como na memorização das circunstâncias que o geraram. Experimentos no laboratório de Canteras, no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), permitiram ainda constatar que, diferentemente do que se acreditava, o caminho percorrido pelo medo no cérebro não é único: temores gerados por situações distintas podem acionar circuitos celulares diferentes.

Mais que um detalhe da fisiologia cerebral de ratos, a descoberta de que alguns conjuntos de células ou núcleos do hipotálamo atuam nas reações de medo pode influenciar até mesmo a compreensão e o tratamento de transtornos mentais como a ansiedade, que atinge 4% dos brasileiros, e sua versão mais extrema e menos comum, o pânico, causa, em 1,6% da população, de crises súbitas de falta de ar e taquicardia nas quais a mente é tomada pela certeza de que se vai morrer. Há um bom motivo para se rever o conhecimento atual sobre esses problemas. É que muito do que se sabe sobre como esses distúrbios se instalam e evoluem baseia-se em experimentos com animais (em especial, roedores) simulando situações ameaçadoras distintas das encontradas na natureza.

Nos laboratórios de pesquisa tenta-se reproduzir as situações de risco de morte dando, sob determinadas condições, leves choques elétricos na pata de um rato. Esse tipo de ameaça, porém, parece não ter o mesmo significado evolutivo que a imposta por predadores. Ao longo de milhares ou até milhões de anos, os animais não tiveram de lidar em florestas, savanas e desertos com descargas elétricas como essas, que assustam e incomodam, mas não causam lesões.

De modo geral, enfrentaram nesses ambientes uma rea¬lidade bem diferente: enquanto procuravam comida, tinham de escapar de animais maiores ou mais fortes, dispostos a transformá-los em refeição. É mais ou menos o que ocorre com o rato que, ao sair de sua toca, dá de cara com um gato – ou com os antepassados do Homo sapiens que deixavam a caverna em busca de alimento. “O modelo experimental que usa o choque para simular os efeitos do medo é muito artificial”, afirma Canteras. “O choque gera aversão, mas não desperta o medo como as situações que põem em risco a sobrevivência.”

A fim de entender como se dá no cérebro a resposta ao medo, Canteras escolheu, cerca de 15 anos atrás, usar uma representação mais fiel ao que deve ocorrer na natureza. Com o casal Robert e Caroline Blanchard, da Universidade do Havaí, nos Estados Unidos, ele desenvolveu o modelo experimental em que o rato permanece por alguns minutos diante de um gato. Mesmo protegido no interior de uma caixa de acrílico transparente, longe das garras do felino, o roedor quase sempre inicia a tentativa desesperada de fuga como se nada o separasse de seu predador.

Já nos primeiros experimentos Canteras observou que a simples exposição ao gato aumentava o nível de atividade de algumas áreas do hipotálamo do rato. Mais especificamente de um grupo de células chamado núcleo pré-mamilar dorsal. Embora contenha um conjunto pequeno de células – são alguns milhares de neurônios entre os bilhões que existem no cérebro –, o núcleo pré-mamilar dorsal se mostrou essencial para as reações de defesa. Sem esses neurônios, em vez de ficarem imóveis ou tentarem fugir aos saltos, os ratos saíam da caixa acrílica para explorar o ambiente diante do gato, como se o predador não estivesse ali.

Com frequência, aproximavam-se do gato como se não o temessem mais, demonstrou Canteras em 1997 em um trabalho publicado no Brain Research Bulletin em colaboração com Silvana Chiavegatto e Luiz Ribeiro do Valle, ambos do ICB, e Larry Swanson, da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos.

Desde os anos 1920 se sabia que o hipotálamo estava, de algum modo, envolvido no comportamento de defesa. Testes feitos na época pelo fisiologista norte-americano Archibald Bard com gatos com lesões cerebrais identificaram uma região posterior do hipotálamo importante para a manifestação da chamada ira fictícia – hiperreação de defesa associada ao corte de conexões de áreas profundas do cérebro com a mais superficial, o córtex. Nas décadas seguintes, outros centros do hipotálamo foram mapeados, mas nada se sabia sobre a função do núcleo pré-mamilar dorsal até os anos 1990.

No período em que passou no laboratório de Swanson, de 1990 a 1992, Canteras dissecou as conexões dos núcleos da região mais central (zona medial) do hipotálamo – entre eles, o pré-mamilar dorsal –, ligados à expressão de comportamentos inatos ou apreendidos. De volta a São Paulo, iniciou testes para compreender como essas áreas do hipotálamo atuavam.

http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=4141&bd=1&pg=1&lg=

Ricardo Zorzettom - Fasesp

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