Micróbio torna mosquito transmissor imune à infecção pelo vírus da doença. Trabalho de brasileiros e australianos sugere nova forma de enfrentar parasita
Se jogar fora a água acumulada de pneus e garrafas não tem adiantado muito, o caminho para derrotar a dengue talvez passe por uma bactéria. O microrganismo, acabam de mostrar cientistas do Brasil e da Austrália, é capaz de infectar o mosquito Aedes aegypti, evitando que o vírus da dengue se estabeleça no inseto.
A estratégia, detalhada em artigo na prestigiosa revista científica "Cell", também pode ser útil contra outro vírus letal transmitido pelo A. aegypti, o Chikungunya, e até contra o parasita causador da malária, normalmente carregado por mosquitos do gênero Anopheles.
A bactéria que fecha as portas aos outros invasores também é passada de geração em geração, o que, em tese, permitiria seu avanço por toda a população de insetos.
Mudança de rumo
A pesquisa representa um passo inesperado numa outra forma de ataque ao mosquito da dengue que o grupo andava estudando. A ideia original era aproveitar o efeito nocivo de uma variedade especial da Wolbachia, bactéria que, segundo estimativas, ataca mais de 60% das espécies de insetos, manipulando-as para seus próprios fins.
"Essa cepa de Wolbachia foi descoberta em Drosophila [moscas-das-frutas] em 1997. Ela aumentava muito em densidade populacional na mosca, e as células tinham danos, chegando até mesmo a estourar, o que motivou os pesquisadores a batizarem a variedade de "Popcorn", ou seja, Pipoca. Esse efeito diminui a longevidade do inseto", explica Luciano Moreira, do Instituto de Pesquisas René Rachou (MG), da Fiocruz, que atualmente faz pós-doutorado na australiana Universidade de Queensland.
Embora a bactéria não infecte naturalmente o A. aegypti, os pesquisadores deram um jeito de transmiti-la ao bicho, por meio de injeções no embrião do mosquito. O plano era criar um bando de A. aegypti que morresse antes do tempo, com menos capacidade de transmitir o vírus da dengue.
Só que havia outros dados, indicando que a bactéria poderia proteger seu hospedeiro de certos vírus. Ao infectar novos mosquitos com o micróbio e depois tentar contaminá-los com o causador da dengue, ficou claro que o grupo havia criado insetos praticamente imunes ao vírus. A façanha foi repetida no caso de um outro tipo de Aedes, que foi inoculado com um parente do parasita da malária -e o venceu.
"O mecanismo disso não está claro", diz o biólogo Bruno Rocha, mestrando da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) que conduz pesquisas na Fiocruz. "Há sinais de que a bactéria ativa o sistema imune [de defesa] do mosquito. Ou pode ser que ela e o vírus estejam competindo por recursos, e por isso ela o exclui. As duas coisas podem acontecer ao mesmo tempo", diz Rocha.
De qualquer maneira, a receita de ataque à dengue está mais ou menos clara: solte esses mosquitos na população e, ao cruzar com os existentes hoje, a bactéria -e a imunidade ao vírus- vai se espalhar.
Resta saber se, quando os testes de campo começarem, os mosquitos com a bactéria serão capazes de competir com os outros. Por isso mesmo, Rocha lembra que nenhuma solução é mágica. "Vamos precisar de outras metodologias e de novos fármacos contra a dengue", diz.
Parasita cria organismo transexual
Não é de hoje que os pesquisadores sabem das misérias que a bactéria Wolbachia realiza no organismo dos insetos. O microrganismo, entre outras coisas, produz machos "transexuais", transformados em fêmeas, porque a criatura só se espalha pelo lado materno.
Por isso mesmo, ela também é capaz de induzir partenogênese -ou seja, o nascimento de prole sem fecundação dos ovos- ou simplesmente a morte dos machos onde vai parar. Algumas espécies tiveram sua vida reprodutiva tão "escravizada" pela Wolbachia que não conseguem mais gerar descendentes sem ela.
O grupo ainda não sabe se carregar a bactéria teria um efeito negativo para o sucesso do A. aegypti na reprodução- o que atrapalharia o plano deles.
"Mostramos em outro trabalho que os mosquitos mais velhos com a Wolbachia têm problemas para achar uma vítima para obtenção de sangue. Mas isso só aumenta o sucesso do programa. Se pensarmos que os vírus precisam de um tempo para se desenvolver nos mosquitos antes da transmissão, cai a chance de eles transmitirem vírus caso consigam burlar a redução da longevidade", diz Luciano Moreira. E ficar sem o vírus talvez seja vantajoso para o mosquito.
(Reinaldo José Lopes - Folha de SP)
0 Comentários
Olá, agradecemos sua visita. Abraço.