Anticorpo derrota HIV e inspira vacina

Dois anticorpos isolados de paciente africano conseguem neutralizar várias cepas do vírus, devolvendo esperança de vacina. Moléculas se ligam a partes de proteína da superfície do vírus que não mudam
A busca até agora frustrada por uma vacina contra a Aids ganha alento com uma pesquisa divulgada nesta quinta-feira, dia 3. Um grupo internacional isolou dois anticorpos - ambos de um mesmo doador, um homem africano - capazes de neutralizar um amplo espectro de variedades do HIV, vírus causador da doença.

Os anticorpos são moléculas produzidas pelo sistema de defesa do corpo que lutam contra bactérias, vírus e outros invasores. O HIV é mestre em driblar essas moléculas.

Os anticorpos descobertos pelos cientistas, batizados PG9 e PG16, são especiais porque atacam uma região do HIV que é comum à maioria das variedades do vírus. Foram testados contra 162 linhagens, e conseguiram neutralizar mais de 120. Uma quantidade alta e inédita.

Algumas poucas pessoas, como esse doador, produzem anticorpos que as protegem do HIV naturalmente. Se, no futuro, for possível produzir uma vacina que estimule a produção deles em todos, as pessoas poderão ser imunizadas contra a Aids. Nos casos do PG9 e do PG16, a eficiência não chega a 100% - é de cerca de 80%. Mas já seria um grande passo.

O HIV é um vírus altamente mutante. As proteínas que ele usa para se ligar às células humanas mudam com tanta facilidade que os anticorpos não conseguem reconhecê-las e se ligar a elas. Essa é a principal barreira à produção de uma vacina hoje.

A abordagem utilizada pelos cientistas, então, é buscar exceções: pedaços dessas proteínas que se mantenham idênticos em todas cepas do vírus.

"Certamente vamos encontrar mais [anticorpos]. Isso deve acelerar o desenvolvimento de uma vacina", diz Wayne Koff, da Iavi (Iniciativa Internacional de Vacinas contra a Aids, na sigla em inglês).

"A grande novidade foi que eles, talvez os melhores cientistas do mundo na área, conseguiram desenvolver um meio novo e eficiente de rastrear os anticorpos", diz Ésper Kallás, infectologista da USP.

"Se você pensar como uma pescaria, nós estávamos, antes, usando a isca errada para pescar anticorpos que funcionassem. Agora nós utilizamos uma abordagem melhor, mapeamos diretamente a capacidade que os anticorpos tinham de bloquear a infecção por HIV. Para isso, desenvolvemos um novo teste. Ele abre novos caminhos", diz Christos Petropoulos, chefe da Monogram Biosciences, uma das empresas envolvidas na pesquisa.

Foram mais de 15 anos de tentativas até que os cientistas da Iavi, do Instituto de Pesquisas Scripps (EUA) e de duas empresas de biotecnologia publicassem a descoberta, ontem, no site do periódico "Science".

Futuro

Outros quatro anticorpos de ação ampla contra o HIV já haviam sido isolados antes. Mas, segundo os pesquisadores, eles eram eficazes contra uma quantidade bem menor de variedades do vírus. Além disso, eles miravam regiões da superfície viral que se mostraram menos expostas - e, por isso, era mais difícil criar vacinas que funcionassem. Os novos anticorpos atacam regiões fáceis de se atingir.

O que precisa ser feito agora é identificar os imunógenos relacionados aos novos anticorpos descobertos. Imunógenos são os responsáveis por estimular o corpo a produzi-los. Vacinando as pessoas, então, seus corpos passariam a gerar PG9, PG16 ou qualquer outro anticorpo mais eficiente que venha a ser descoberto.

As descobertas são impressionantes, mas não significam que tudo vai dar certo. No passado, vacinas antiaids chegaram até a fase de testes clínicos. Falharam. O caso mais famoso foi a vacina da Merck, em 2007. "Quem tomava vacina, dependendo do risco, tinha até mais chance de ter vírus", diz Ricardo Diaz, da Unifesp.

Ficou famosa a fala de Margaret Heckler, então secretária de Saúde dos EUA, em 1984, dizendo que a vacina contra a Aids estaria disponível em dois anos. É uma demonstração do quanto é difícil fazer uma que funcione e como é imprevisível saber quando isso acontecerá.
(Ricardo Mioto)

Direitos do doador têm de ser contemplados

Se o experimento com os anticorpos neutralizantes de fato resultar numa vacina com valor comercial, coloca-se uma interessante questão bioética: o doador africano tem algum direito sobre a patente da vacina?

As respostas dadas a casos análogos são polêmicas e pouco satisfatórias. Desde que a Suprema Corte dos EUA referendou, em 1980, a noção de que "tudo sob o Sol feito pela mão do homem" é patenteável, iniciou-se uma corrida maluca por direitos de propriedade intelectual inclusive sobre seres vivos, células e genes.

Num caso emblemático, a Suprema Corte da Califórnia decidiu em 1990 que um paciente não tinha direito às células do próprio corpo, que um médico extraíra sem seu pleno conhecimento e das quais derivara uma linhagem comercial.

A história começou em 1976, quando John Moore procurou o centro médico da Universidade da Califórnia para tratar uma leucemia. O médico que o atendeu, David Golde, recomendou a retirada do baço, autorizada por Moore.

Golde percebera que o sistema imunológico de Moore era especial, e do baço extraiu uma linhagem de células que patenteou para tratar câncer. Tudo sem mencionar ao paciente seu interesse econômico.

Moore processou o médico e a universidade, pedindo parte dos lucros. O Judiciário, porém, entendeu que ele não tinha direitos sobre partes do corpo descartadas com sua autorização. Os juízes deixaram claro que temiam bloquear o avanço da medicina, se dessem ganho de causa ao queixoso.

Em meio a essa e outras controvérsias, vai crescendo nos EUA a percepção de que o atual sistema de patentes mais prejudica do que favorece novas descobertas. É que, assim que um cientista patenteia algo, ninguém mais faz pesquisas na área, para não ter de pagar royalties nem dividir lucros.

(Hélio Schwartsman)(Folha de SP, 4/9)

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