Algumas pessoas condenam e outras aprovam o uso de células tronco embrionárias humanas (CTEH), e a destruição de embriões humanos, em experimentação científica e terapêutica.
O Mississipi foi às urnas para decidir sobre o estatuto dos embriões humanos na sua Constituição estadual, e a aprovação de que deveriam ser vistos e tratados como pessoas (personhood) desde a fertilização teria implicações não só para o aborto legal, mas também para as pesquisas com CTEH, com embriões humanos, e com fetos humanos.
Há ampla diversidade sobre como tratar destes casos em várias legislações estaduais, nos Estados Unidos da América (www.ncsl.org/default.aspx?tabid=14413&fb_source=message), e em várias legislações nacionais em outros países (www.hinxtongroup.org/wp.html).
Algumas vezes argumenta-se a partir de princípios normativos, sejam princípios tradicionais da bioética - como aparecem no livro clássico Princípios de ética biomédica ou em documentos normativos sobre ética na pesquisa, como a Resolução 196 no Brasil ou a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, da ONU-, sejam princípios ético-jurídicos tradicionais como o respeito pela dignidade humana ou a ilicitude de se causar danos a terceiros. Este é um modo parcialmente adequado de se argumentar, pois se nos perguntam "por que aprovamos (ou rejeitamos) certa ação", podemos dizer que é porque a ação é "permitida (ou proibida) pelo princípio x ou y".
Outras vezes argumenta-se a partir das conseqüências específicas da aceitação ou da recusa de pesquisas deste tipo, ora destacando os efeitos (supostos) da experimentação sobre o embrião ou sobre a futura pessoa em potencial que ele abrigaria, ora destacando os efeitos (supostos) sobre pacientes e sociedade em geral, incluindo sobre a prática científica. Este também é um modo parcialmente adequado de se proceder, pois também podemos responder à questão acima dizendo que "a ação produz tais e quais efeitos ou conseqüências" para a sociedade em geral. Se nos perguntam "mas por que é errado (ou certo) produzir estes fatos" podemos (novamente) apelar para princípios que proíbem ou permitem aqueles efeitos, e se perguntam o porquê dos princípios, podemos elencar as conseqüências de segui-los ou infringi-los.
Ou seja, na verdade os dois tipos de argumentação são interdependentes, pois o primeiro, que parte dedutivamente de cima para baixo, de normas abstratas, depende dos fatos sobre o que ocorre para seu entendimento e para sua aplicação, já que é preciso saber o que significam e a que se aplicam exatamente as palavras ou termos dos princípios, e também a que casos concretos eles se aplicam. O segundo modo, que parte indutivamente de baixo para cima, dos fatos observados, depende de princípios normativos para sua completude (sem a prescrição ou proibição de se fazer certas coisas ligadas aos fatos, uma mera descrição dos efeitos será infértil para a solução dos dilemas).
Temos então dois problemas, um problema metodológico ou teórico, ligado à avaliação de protocolos da ciência e da medicina, e um problema moral e legal propriamente dito, ligado à deliberação sobre usar ou não usar embriões humanos na ciência e na medicina (e como usá-los).
O primeiro problema diz respeito a termos ou não uma metodologia clara sobre como proceder para fazer uma avaliação racional em assuntos morais. O modo predominante no Brasil é o primeiro, a aplicação de princípios normativos abstratos a casos concretos conhecidos e, por analogia, sugerir sua aplicação aos casos novos. Ele é irracional sem a utilização do segundo modo, o esclarecimento cuidadoso dos fatos envolvidos, dos efeitos esperados e prováveis, e da comparação com situações similares. Ao menos se quisermos explicar as razões de nossos princípios e de nossas políticas de ação, e ao menos quando temos casos difíceis ou casos novos, que não se enquadram claramente na aplicação trivial da norma. Muito de nosso debate então ainda está subdesenvolvido pela subutilização do modo indutivo ou empírico de avaliar assuntos morais.
Por exemplo, sobre o uso de CTEH, é incerto ou pouco claro se podemos ou devemos aplicar aqueles princípios tradicionais citados (os bioéticos ou os jurídicos) à situação do embrião humano e seu uso pela ciência e pela medicina, por exemplo, se aglomerados de CTEH retiradas do embrião na fase do blastocisto, em laboratório, seriam um sujeito de pesquisa ou não; se tais células humanas em laboratório seriam mesmo embriões humanos, no sentido por exemplo dos (pré)embriões no útero da mãe; se têm e qual seria seu estatuto moral e legal etc. Também não está claro qual o resultado da aplicação destes princípios abstratos, caso seja este o modelo de deliberação que deva orientar a resolução de dilemas. Por exemplo, se ele proibiria totalmente, permitiria totalmente, ou permitira em parte, a utilização e destruição de embriões humanos em pesquisa e terapia.
Sobre o problema substantivo propriamente dito, trata-se de esclarecer a ética da destruição de embriões humanos pela pesquisa científica e terapia médica, na pesquisa com CTEH, por exemplo. Tal problema liga-se ao balanceamento dos contra e dos prós a este uso, e a um posicionamento ou protocolo sugerido como solução do dilema. Contra tal destruição podemos alegar principalmente: (a) o (suposto) erro de destruir a vida humana embrionária (em especial porque ela seria a vida de um ser humano como qualquer outro, dada sua identidade genética, ou ao menos sua potencialidade para gerar uma pessoa humana, se medidas fossem tomadas para isso); (b) o (suposto) erro de tratar a vida humana embrionária como simples meio ou como objeto, dada a dignidade humana e a proibição de instrumentalização de algumas pessoas para beneficiar outras pessoas.
Também podemos alegar, contra o uso de embriões: (c) o (suposto) erro da biotecnologia fazer tudo o que é possível mesmo quando envolve a vida humana, dado o valor simbólico e tradicional da vida humana; (d) os malefícios sociais colaterais do erro citado (ou dos três erros citados), como por exemplo, o risco disto permitir maior liberalidade na pesquisa com seres humanos em geral e gerar abusos, ou o risco de desvalorizar a vida humana em geral; (e) a implicação, para alguns imoral e inaceitável, de pesquisas com embriões mais desenvolvidos do que aquele no estágio de blastocisto, e com fetos precoces ou desenvolvidos, também ter de ser permitida.
Em favor do uso de embriões podemos alegar principalmente: (a') a (suposta) neutralidade ética ou quem sabe até um (suposto) dever ético de se manipular a vida humana embrionária em experimentação científica e terapêutica (em especial porque ela não seria o equivalente à vida de uma pessoa humana como um de nós, dada sua não-individualidade - o embrião ainda poderia se dividir em mais de um, ou se for mais de um, ainda poderia fundir-se em um só em fase posterior -, e sua não-diferenciação - as células do embrião em forma de blastocisto não são ainda células desta ou daquela parte do corpo, nem células apenas do corpo, pois parte delas formaria a placenta-; embriões em laboratório descartados para implantação reprodutiva não são uma pessoa em potencial); (b') a (suposta) neutralidade ética ou quem sabe até um (suposto) dever de se manipular embriões humanos doados ou criados para pesquisa e terapia médicas, por causa da beneficência potencial envolvida (conhecimento científico e tecnológico, remédios e terapias para doenças graves, biotecnologia de melhoramento humano, por exemplo).
Também podemos alegar, em favor do uso de embriões: (c') o (suposto) acerto da biociência e da biotecnologia buscarem desenvolver todo o seu potencial, inclusive e principalmente quando envolver a vida humana, dados os benefícios prováveis da (e para a) liberdade tecnocientífica; (d') os prováveis benefícios científicos e médicos da pesquisa com embriões; (e') a possibilidade de restrição das pesquisas e terapias ao uso de embriões humanos nas fases iniciais de desenvolvimento, e a possível permissibilidade de pesquisas com embriões e fetos (tecidos fetais ou fetos vivos) em outras fases de desenvolvimento, doados ou criados para tal.
O leitor deve reler concomitante e emparelhadamente as razões contrárias (A - E) com as razões favoráveis (A' - E'): elas dizem respeito aos mesmos aspectos factuais e normativos em cada alínea (por exemplo, compare novamente com cuidado A e A', B e B', etc.) As razões A e B (e A' e B') focalizam o tema factual e normativo mais importante, o do estatuto metafísico (o que é exatamente um embrião humano) e normativo (o que se deve fazer diante de um embrião humano) do embrião humano, e que normalmente está vinculado estreitamente ao uso de princípios normativos em nosso debate brasileiro. As razões C, D e E (e C', D', e E') focalizam temas subsidiários, mas não menos importantes, das outras conseqüências (que não para o embrião). Mas em ambas, de A a E (de A' a E'), entram fatos específicos e princípios ou valores também específicos.
A melhor solução para o problema do uso de embriões humanos, na minha hipótese, encontra-se em A'. Suponha que usando a técnica da clonagem, um cientista transforme uma de suas células epiteliais em um embrião humano de laboratório até a fase de blastocisto, que também é inapropriado para implantação reprodutiva (não deve ser implantado segundo os critérios da FIV). Este embrião não é um indivíduo (pelo que foi dito acima sobre sua indiferenciação celular e sua não identidade numérica), e não é uma pessoa potencial (pois não pode ser desenvolvido em uma pessoa no futuro, pela gestação). É muito mais razoável que possa ou deva tratá-lo como trataria sua célula epitelial, ao menos se for para pesquisa científica e terapêutica séria, do que deva tratá-lo como trataria (todo) seu organismo ou (toda) a sua pessoa, ou outra pessoa. Supondo que a ciência seja muito importante, é muito mais razoável permitirmos do que proibirmos a experimentação científica com embriões humanos deste tipo. E todo embrião humano de laboratório até antes da fase de diferenciação celular, que seja inviável ou descartado para implantação reprodutiva, e que seja doado voluntariamente pelos progenitores para pesquisas sérias (o que imagino que é sempre o caso na ciência), será idêntico ao clone imaginado neste exemplo.
Alcino Eduardo Bonella é professor de Ética do Instituto de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), membro da International Association of Bioethics (IAB), e pesquisador do CNPq.
(Artigo de Alcino Eduardo Bonella enviado ao JC Email pelo autor)
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