A mesma molécula que 53 anos atrás pesquisadores brasileiros apresentaram ao mundo como um potente regulador da pressão arterial – ela originou toda uma classe de medicamentos anti-hipertensivos – volta a surpreender por sua versatilidade.
Passadas mais de cinco décadas de sua identificação pelos médicos Maurício Rocha e Silva, Wilson Teixeira Beraldo e Gastão Rosenfeld, essa molécula, a bradicinina, um fragmento de proteína (peptídeo) naturalmente encontrado no sangue e em outros tecidos do corpo e liberado em concentrações mais elevadas na inflamação, chama agora a atenção por efeitos que não se imaginava que pudesse produzir.
Estudos conduzidos nos últimos anos, também por equipes brasileiras, mostram que a bradicinina faz células-tronco se transformarem em neurônios e os protegem da morte em lesões cerebrais. No tecido adiposo, sugere outro trabalho, ela regula a liberação do hormônio que induz à saciedade e reduz o acúmulo de gordura.
Ainda sem aplicação clínica, esses achados abrem novos caminhos para se compreender como o cérebro se forma e como surgem certas doenças neurológicas, além da obesidade. Renovam ainda a expectativa de que, quem sabe em alguns anos, conduzam a formas mais eficientes de tratar esses problemas.
A suspeita de que a bradicinina poderia fazer algo além de baixar a pressão sanguínea e desencadear inflamações localizadas, resposta natural do organismo a lesões, surgiu em meados dos anos 1990, durante o doutorado do bioquímico Alexander Henning Ulrich, na Universidade de Hamburgo, Alemanha. Ulrich investigava os mecanismos de proliferação de tumores do tecido neural e observou que a bradicinina acionava certos mecanismos de sinalização nessas células – o efeito era mais ameno ou nulo em outras células. A partir de 2002, como professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), ele retomou o estudo sobre esse papel da bradicinina.
O biomédico Antonio Henrique Martins, em seu doutorado no laboratório de Ulrich, acompanhava a transformação de células-tronco (imaturas) em neurônios – as células cerebrais que armazenam e transmitem informações e nos permitem aprender, lembrar e até mesmo pensar sobre a capacidade de pensar – quando viu um resultado inesperado. Neurônios cultivados em um dos frascos plásticos permaneciam adormecidos mesmo depois de receberem um banho do neurotransmissor acetilcolina, um dos mensageiros químicos que costumam despertá-los.
Henrique chamou Ulrich: “Devo estar fazendo algo errado. Essas células não respondem à acetilcolina”. Eles repetiram os testes, mas os resultados não mudaram. Novamente surgiram células que lembravam os neurônios, mas não se comportavam como neurônios, semanas depois de as células-tronco terem sido colocadas em frascos com uma sopa de nutrientes que as estimula a assumir funções específicas num processo conhecido como diferenciação celular. Algo estava interferindo no amadurecimento das células-tronco.
Os pesquisadores reexaminaram os ingredientes do meio de cultura das células. O único componente diferente era um composto sintético conhecido como HOE-140, que inibe a atividade da bradicinina, à época ainda sem ação conhecida sobre o cérebro. Numa espécie de corrida molecular, ele adere a uma proteína de superfície das células, o receptor B2, a que a bradicinina deveria se ligar. Assim, o HOE-140 impede a bradicinina de interagir com as células.
Ao se ligar ao receptor B2, a bradicinina aciona uma cadeia de reações químicas que modifica o ambiente intracelular. Pequenas bolsas liberam íon cálcio para o citoplasma, a porção gelatinosa da célula, que envolve o núcleo. No citoplasma, oscilações na taxa de cálcio – os níveis podem aumentar de 10 a 100 vezes – funcionam como um código que aciona certos grupos de genes no núcleo e define o destino da célula: seguir se multiplicando e preservar o potencial de originar diferentes tipos de células ou se especializar em determinada função.
Henrique e Ulrich prepararam a seguir outra série de ensaios com a mesma linhagem de células embrionárias de tumor de camundongo, capazes de originar fibroblastos, células de músculo e de tecido cerebral. Durante oito dias, tempo que as células imaturas levam para se transformar em neurônios em laboratório, eles mediram a quantidade de receptores B2 e a liberação de bradicinina.
Também compararam o grau de amadurecimento das células tratadas com bradicinina com o das que receberam uma combinação de bradicinina e HOE-140, que anula o efeito do peptídeo identificado nos anos 1940 por Rocha e Silva e seus colegas. Ao final, constataram: sem bradicinina, a transformação e o amadurecimento não se completam. Os neurônios são imperfeitos.
(Fasesp)
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