A proteção das esferas

Em 16 de dezembro passado houve motivo para comemoração antecipada no Núcleo de Terapia Celular e Molecular (Nucel) da Universidade de São Paulo (USP) embora ainda faltassem nove dias para o Natal.

A CellProtect, uma jovem empresa de biotecnologia originada de pesquisas iniciadas no Nucel, uma spin-off no jargão econômico, depositou seu primeiro pedido de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).


O alvo da proteção intelectual é uma nova formulação de microcápsulas que talvez possa elevar o transplante de ilhotas do pâncreas, hoje um procedimento de uso experimental e sujeito a inúmeras restrições, à condição de tratamento eficaz e seguro para pacientes do diabetes, em especial os do tipo 1, incapazes de produzir insulina e dependentes de injeções regulares do hormônio para controlar a doença.

Feitas à base de alginato, material obtido de algas marrons, as cápsulas podem ser usadas para revestir as ilhotas e, assim, permitir a realização de transplantes sem a necessidade de reduzir as defesas imunológicas do receptor com o emprego de drogas.

O primeiro problema desse tipo de implante, que envolve células obtidas a partir do pâncreas de um doa-dor humano recém-falecido, é justamente controlar a rejeição. Derrubar o sistema imunológico do receptor de um implante é um procedimento caro e delicado, que fragiliza o doente e o predispõe a pegar infecções. O segundo é manter as ilhotas, onde ficam as células beta responsáveis pela produção da insulina, funcionando a contento por um bom tempo.

De acordo com os pesquisadores da universidade e da empresa, que desenvolveram conjuntamente as microcápsulas, esses dois empecilhos são contornados com o emprego de implantes de ilhotas revestidas. “Controlamos o diabetes em camundongos que receberam o transplante e as ilhotas estão produzindo insulina há mais de 300 dias”, afirma a bióloga Mari Sogayar, professora titular do Instituto de Química da USP, coordenadora do Nucel e consultora da CellProtect. “Agora gostaríamos de testar a abordagem em animais maiores e, se tudo der certo, em pacientes humanos.”

Graças aos esforços da equipe de Mari Sogayar, cujo laboratório foi o primeiro e ainda é o único do Brasil capaz de isolar ilhotas humanas, cinco pacientes diabéticos já receberam implantes de células do pâncreas desde dezembro de 2002. Mas, em todos os procedimentos feitos no país, o material biológico injetado não estava protegido por um revestimento.

Agora, em parceria com a CellProtect, que ajudou a fundar ao lado de outros pesquisadores e ex-alunos da pós-graduação, a bióloga quer dar um passo adiante e passar a usar as microcápsulas nos transplantes. “Com elas, conseguimos controlar os compostos que podem entrar e sair dos poros desse revestimento”, diz o médico e pesquisador mineiro Thiago Rennó dos Mares Guia, presidente da CellProtect e colaborador do Nucel. “As células beta são muito delicadas e precisam de um suprimento adequado de nutrientes e oxigênio para se manter vivas.”

Por provocar poucas reações do sistema imunológico, o alginato é um composto de base comumente usado em revestimentos destinados a serem implantados em seres humanos. Sua presença nas microcápsulas da CellProtect/Nucel não representa grande novidade. O diferencial do biomaterial brasileiro são, segundo os pesquisadores, suas propriedades físicas e químicas singulares. “É como fazer um bolo”, compara a bióloga Ana Carolina Vale Campos-Lisbôa, que fez doutorado com a professora Mari Sogayar e é uma das sócias da CellProtect. “A forma como cada pessoa usa os ingredientes torna uma receita única.”

O alginato, que, aliás, também é fartamente usado na culinária em gelatinas e emulsificações, é formado pela combinação de dois ácidos, o gulurônico e o manurônico. Misturadas em proporções diferentes, essas substâncias resultam em alginatos com características distintas. A elasticidade, a resistência e a porosidade desse biomaterial variam de acordo com a “receita” adotada.

As ilhotas do pâncreas não precisam ser colocadas dentro das microcápsulas. São embebidas numa solução viscosa de alginato e íons de cálcio e bário e, em seguida, gotejadas numa torneira especial, de onde saem envolvidas por uma esfera do biomaterial. O diâ-metro de cada microcápsula obtida pela CellProtect/Nucel oscila entre 600 e 800 micrômetros, grande o suficiente para abrigar com certa folga um grupo de ilhotas em seu interior.

O tamanho exato de seus poros é um dos segredos da equipe brasileira. Devido a suas dimensões e propriedades fisico-químicas, os diminutos furinhos nas paredes das esferas de alginato funcionam como uma membrana seletiva. Evitam a entrada nas microcápsulas de elementos nocivos, como os anticorpos e os macrófagos (células que engolem elementos estranhos ao organismo), mas deixam passar a glicose, o oxigênio e outros nutrientes indispensáveis para a manutenção das células beta. Permitem ainda, e isso é fundamental, que a insulina fabricada pelas ilhotas seja expulsa do interior do invólucro (ver figura). Dessa forma, o hormônio que estava em falta no organismo chega à corrente sanguínea do diabético.

 
(Fasesp)

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