Primeiro, ele estraçalhou os brinquedos para cachorro. Depois, atacou móveis, roupas, livros escolares – e, por fim, qualquer coisa que lembrasse unidade familiar. James, um mestiço de perdigueiro cor de chocolate, passou de animal adorável a criança-problema em questão de semanas.“O pomo da discórdia foi que minha mãe e minha irmã achavam que ele era inteligente demais para se tratado como cachorro.
Elas achavam que ele era uma pessoa e devia ser tratado assim, ou seja, ser mimado”, contou Danielle, mulher da Flórida que pediu para não ter o sobrenome revelado para evitar mais brigas familiares por causa de animais de estimação.
“Até hoje, dez anos depois, o cachorro continua sendo uma fonte de desavenças e raiva.” Há muito tempo os psicólogos confirmaram o que a maioria dos donos de animais sente no fundo da alma: para algumas pessoas, os laços com os bichos são tão fortes quanto os com humanos. E, certamente, menos complicados. A devoção de um cão é como, sem ironia, um gato ronronando no colo sem artifícios (ou desaprovação).
Mesmo assim, a natureza das relações individuais entre humanos e animais de estimação varia amplamente e somente agora os cientistas estão começando a identificar tais diferenças e impactos na família. Afinal, os bichos alteram não apenas a rotina familiar como também sua hierarquia, ritmo social e rede de relacionamentos. Diversas novas linhas de pesquisa ajudam a explicar por que esse efeito geral pode sertão reconfortante em certas famílias e fonte de tensão em outras. As respostas têm pouco a ver com o animal.
“Para começo de conversa, a expressão ‘bicho de estimação’ não traduz oque esses animais significam numa família”, assegurou Froma Walsh, psicóloga da Universidade de Chicago e codiretora do Centro de Saúde da Família de Chicago. O termo mais usado hoje em dia pelos pesquisadores é “animal de companhia”, segundo ela, mais próximo ao papel infantil que costumam desempenhar. “Da mesma forma que as crianças são definidas no sistema familiar como pacificadoras, intermediárias, fontes de discórdia, o mesmo se dá com os animais.” As pessoas atribuem esses papéis em parte baseadas nas sensações e memórias associadas com seus totós e lulus, afirmam os psicólogos – ecoando a ideia de transferência de Freud, segundo a qual os primeiros relacionamentos fornecem um padrão para os seguintes. Em muitas famílias, isso significa que Scruffy é o pacificador universal e ponto de apoio da afeição compartilhada.
Em uma entrevista de família, recentemente resenhada por Walsh em um artigo, uma mãe afirmava que a melhor forma de acabar uma discussão entre irmãos era latindo: “Parem de brigar, vocês estão irritando o Barkley!” “Isso costuma ser mais eficaz do que pedir para não bater no irmão”, segundo a mãe – Barkley não fez comentários.
Os animais costumam perceber essas expectativas e agem de acordo. Em um vídeo gravado de outra família discutida no artigo, o gato pula no colo da mulher quando sente uma discussão iminente com o marido. “E funciona”, Walsh explica. “Isso reduz a tensão em ambos; dá para ver acontecendo.” “Ela é minha primeira filha”, contou Adrienne Woods, violoncelista de Los Angeles, referindo-se a Bella, o filhote de husky que ela e o noivo acabaram de adotar. “O principal ponto positivo é a sensação de paz interior. Eu me sinto como uma vovó, como se tivesse um companheiro que esperasse há 30 anos.” Os bichos também podem provocar tensão, como milhões de casais descobrem da pior maneira. O programa do canal Animal Planet “Ou Eu ou o Cachorro” tem por base esses casos. E Cesar Millan, especialista em comportamento canino, tornou-se uma celebridade ajudando as pessoas a ganhar controle sobre sabujos indisciplinados e botando ordem em casas com linhas de autoridade incertas.
Talvez o mais comum seja os animais se tornarem divisores psicológicos não por falta de limites, mas porque os membros da família têm visões diferentes sobre o que um bicho de estimação deva ser. E tais visões são formadas por herança cultural, mais do que as pessoas percebem.
Em um estudo sobre donos de cachorros, Elizabeth Terrien, socióloga da Universidade de Chicago, conduziu 90 entrevistas em profundidade com famílias de Los Angeles, inclusive Woods. Uma tendência clara que surgiu é que pessoas com histórico rural costumam ver os cães como guardiões que devem ser mantidos do lado de fora, enquanto casais de classe média geralmente os tratam como filhos, muitas vezes deixando-os dormir no quarto ou em uma cama especial.
Quando pedidas para descrever seus bichos sem usar a palavra “cachorro”, as pessoas dos bairros mais abastados “disseram coisas como filho, companheiro, amiguinho, filho adolescente, irmão ou parceiro do crime”, relata Terrien. Em bairros com maior porcentagem de imigrantes latinos, os donos tendiam a dizer “protetor” ou mesmo “brinquedo para as crianças”, ela constatou. “Nesses bairros, às vezes se vê crianças arrastando cães numa guia, empurrando e brincando, um tipo de comportamento que alguns donos de classe média julgariam abusivo.” Tais diferenças costumam surgir somente depois que uma família adotou um animal, podendo exacerbar as mais rotineiras discórdias sobre os cuidados com o bicho, como quanto gastar no veterinário, quantas vezes levá-lo para passear e como ele deve interagir com crianças pequenas. A consequência desses conflitos não é difícil de descobrir: quase todo mundo conhece casais que brigaram por causas de animais, ou até se divorciaram, porque o cocker spaniel da esposa deu uma mordidinha no rottweiler do marido.
E existem incontáveis solteiros por aí casados com uma Frida ou Diego de pelos – banindo todo e qualquer parceiro potencial que não se apaixone rapidamente e com o mesmo ardor.
O motivo de esses sentimentos serem tão intensos está no fato de representarem ideologias, além de disposições culturais e psicológicas. No verão de 2007, David Blouin, sociólogo da Universidade de Indiana, conduziu entrevistas extensivas com 35 donos de cachorros no Estado, escolhidos para representar uma mistura diversificada de moradores da cidade, do interior e dos subúrbios.
Ele descobriu que via de regra as pessoas se enquadram em uma de três grandes crenças relacionadas a bichos de estimação. Os membros de um grupo, que ele chama de “dominionistas”, veem os animais como um apêndice da família, um ajudante útil classificado abaixo dos humanos que é amado, mas, no fim das contas, substituível. Muitas pessoas de áreas rurais – como os imigrantes entrevistados por Terrien – se encaixam nessa categoria.
Outro grupo de donos, batizado por Blouin de “humanistas”, são do tipo que tratam com carinho o cão como se ele fosse um filho preferido ou principal companheiro, que será mimado, poderá dormir na cama e pelo qual chorarão tal qual fariam com uma criança moribunda no fim da vida. Entre eles estão as pessoas que fazem pratos especiais para o animal, levam a aulas de exercício, à terapia – ou deixam que eles escolham à vontade.
O terceiro, chamados “protecionistas”, se esforçam para defender os bichos. Esses donos têm pontos de vista fortes sobre tratos com animais, mas suas opiniões sobre como ele deve ser tratado – dormir dentro ou fora de casa, quando deve ser sacrificado – variam de acordo com o que julgam “melhor” para o bicho. Entre seus membros estão as pessoas que vão “salvar” um cachorro amarrado numa árvore ao lado de uma loja, geralmente entregando-o em casa junto com um sermão sobre como cuidar de um animal.
“São ideologias e, dessa forma, os protecionistas são grandes críticos dos humanistas, que são grandes críticos dos dominionistas e assim por diante”, contou Blouin. “Podemos notar como isso criará problemas se as pessoas de uma mesma família tiverem orientações diferentes. Cada pequena decisão sobre o animal vem carregada de ideologia.” Até o fim: os casais podem discordar sobre quando sacrificar um animal e também ter reações emocionais diferentes com a perda. “Para quem trata o bicho como uma criança, pode parecer a perda de um filho – e, é claro,as crianças não devem morrer antes dos pais”, diz Terrien. É uma crise do fim da vida, que costuma dar origem a um longo período de luto. Já para o parceiro que vê o animal de outra forma, a morte pode ser um alívio.
Nada disso quer dizer que um bicho de estimação engenhoso – usando a força combinada da fofura, olhares tristes e episódios em que ficam presos em caixas ou comem lápis de cor – não possa unir essas religiões diferentes. Os terapeutas familiares, porém, dizem que geralmente os diplomatas de quatro patas precisam da ajuda dos bípedes para ter sucesso.
“Ou as famílias se entendem e lidam com essas diferenças, ou abandonam o bicho – o que acontece com muito mais frequência do que se pensa”, garantiu Terrien.
(Fonte: Portal iG)
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