Na rota segura

Simulação explica por que a Terra não colidiu com o Sol.
A situação era desconcertante. Nas duas últimas décadas, toda vez que um astrofísico fazia uma simulação computacional sobre a origem do sistema solar o resultado era, invariavelmente, o mesmo: a Terra deveria ter desaparecido há muito tempo.
Sol e Terra: novo modelo computacional evita trombada

Cerca de 100 mil anos depois de sua gênese, antes mesmo de ter se formado por completo, o planeta deveria ter entrado numa espiral suicida que o faria colidir com o Sol. De acordo com os modelos tradicionais que tentam explicar o surgimento de sistemas planetários, a Terra seria mais um corpo celeste destinado a trombar com a estrela-mãe. Claro que nada disso ocorreu e o impacto fatal nunca houve. Mas só recentemente alguns pesquisadores formularam uma teoria alternativa capaz de explicar por que o planeta não foi engolido pelo astro-rei. “Conseguimos a primeira simulação em que a Terra não ‘cai’ no Sol”, afirma o astrofísico Wladimir Lyra, um brasileiro de 29 anos que faz pós-doutorado no Museu Americano de História Natural (AMNH, na sigla em inglês) de Nova York. O pesquisador foi o responsável por abastecer de dados e conduzir o ensaio digital que, nos computadores, mudou o curso da história evolutiva da Terra.

Como os demais planetas de nosso sistema, a Terra surgiu a partir do acúmulo de poeira e gás do disco protoplanetário, nuvem que envolvia o Sol logo após essa estrela ter se formado, há cerca de 4,6 bilhões de anos. Hoje há quase um consenso entre os cientistas de que os planetas do sistema solar – e também os mais de 500 mundos extrassolares até agora descobertos (ver quadro na página 53) – não se originaram no mesmo lugar em que se encontram atualmente. Nasceram num ponto do disco e, depois de uma série de interações gravitacionais com o gás e os objetos do sistema, migraram para outra região. Ali encontraram uma órbita de equilíbrio em torno do Sol e se estabeleceram.

Nos últimos 20 anos, os modelos computacionais adotados por vários grupos de astrofísicos partiam do princípio de que, embora a temperatura ao longo de todo o disco variasse (quanto mais próximo do Sol, mais quente), qualquer flutuação térmica sofrida pelo gás num determinado ponto era instantaneamente irradiada para o ambiente externo. Na prática, isso equivalia a dizer que o eventual excesso de calor num lugar específico era transferido para o espaço e a temperatura em cada ponto do disco se mantinha sempre constante. As consequências de tal forma de pensar, que é usada sem problemas no estudo de galáxias, eram catastróficas nas simulações sobre a evolução do sistema solar: não só a Terra, mas todos os planetas trombavam com o Sol. “Quando introduzimos flutuações locais de temperatura no disco, os planetas começaram a migrar para órbitas mais afastadas do Sol”, diz Lyra, que foi o primeiro autor de um artigo publicado na edição de 1o de junho de 2010 do Astrophysical Journal Letters (ApJL) com os resultados das novas simulações.

De acordo com os pesquisadores, o novo modelo prevê a evaporação total da nuvem protoplanetária após 5 milhões de anos e é capaz de explicar a migração de planetas com massa até 40 vezes maior do que a da Terra. “Durante seu processo de evolução, o disco perde gás e fica com uma densidade tão baixa a ponto de não conseguir mais mover os planetas, que acabam então entrando em sua nova órbita”, explica o astrofísico Mordecai-Mark Mac Low, coordenador do trabalho do brasileiro no AMNH e coautor do estudo.

As ideias centrais que permitiram abastecer a simulação computacional derivam em grande medida de trabalhos recentes de outro astrofísico da nova geração. Desde 2006, o holandês Sijme-Jan Paardekooper, de 31 anos, que hoje faz pós-doutorado no Departamento de Matemática Aplicada e Física Teórica da Universidade de Cambridge, Inglaterra, publica estudos sobre os possíveis efeitos decorrentes de variações de temperatura no gás de um disco protoplanetário. “Sempre procuramos o modelo teórico mais simples que possa explicar um fenômeno físico”, diz Paardekooper, que também assinou o artigo na ApJL.

A questão-chave é entender como a trajetória dos embriões de planetas podia mudar de curso numa simulação em função de alterações térmicas em pontos específicos da nuvem de gás. Antes disso, é preciso ter em mente que a órbita final de um planeta em formação é determinada por uma série de variáveis, sobretudo as interações gravitacionais com os demais componentes do sistema (a estrela-mãe, outros planetas e o disco de gás). “Alguns fatores favorecem a ocorrência de uma migração na direção do Sol e outros para longe dele”, comenta Paardekooper. Por didatismo, a explicação que se segue aborda o mecanismo central que, segundo as simulações de Lyra e seus colegas, tirou a Terra da rota de colisão com o Sol.

Em um disco protoplanetário, a força gravitacional de um planeta modifica a órbita original do gás que o circunda. Em resposta a esse fenômeno, o planeta também altera sua órbita, só que na direção oposta da que o gás foi deslocado. Até aí nada de novo. Tudo isso é previsto pela lei da ação e da reação de Isaac Newton. O pulo do gato vem agora. De acordo com as novas simulações, ao incorporar eventuais variações locais de temperatura no disco protoplanetário, os pesquisadores perceberam que o gás se torna mais denso nas zonas mais próximas ao Sol e é capaz de deslocar a Terra para uma órbita segura.

(Marcos Pivetta - Fasesp)

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