Especialistas rastreiam no país síndrome genética que pode causar sucessivos cânceres.
Nem todos da mesma família, mesmo com a mutação, desenvolvem câncer
Em 1998, no quinto ano do curso de medicina, Maria Isabel Achatz atendeu uma mulher de 65 anos que já tinha tido três cânceres – um no seio, o segundo no peritônio, a membrana que reveste o abdômen, e o terceiro em outro seio – e naquele momento apresentava outro, no pulmão. “Ela contou que os médicos tinham falado que um câncer não tinha nada a ver com outro”, retoma Maria Isabel. Intrigada, já que não era mesmo um só tumor que havia se espalhado por outros órgãos, ela começou a puxar o fio de uma síndrome rara, marcada pela predisposição ao câncer e expressa por meio de tumores independentes e sucessivos em idade precoce – antes dos 30 anos e mesmo na infância.
À medida que apareciam outras pessoas com relatos semelhantes aos daquela mulher, Maria Isabel, em São Paulo, e logo depois outros pesquisadores de outros estados concluíram que essa doença de origem genética – a síndrome de Li-Fraumeni, que aumenta em até 90% o risco de desenvolver câncer ao longo da vida –, embora fosse descrita como rara, não era rara no Brasil. Se a frequência dessa doença na população for confirmada, poderão surgir sérios problemas de saúde pública, na medida em que os hospitais públicos, ao menos de imediato, dificilmente terão laboratórios e equipes para acompanhar as pessoas com esse problema.
“Em um ano encontramos 28 famílias com casos muito semelhantes”, espantou-se a médica, pesquisadora no Hospital do Câncer A.C. Camargo desde 2001. Trabalhando em conjunto, as equipes de Maria Isabel, de Fernando Vargas, do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, e de Patricia Ashton-Prolla, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), identificaram até agora 325 pessoas de 132 famílias com a síndrome de Li-Fraumeni. Em nenhum outro país apareceram tantos portadores dessa doença, até hoje encontrada em 560 famílias no mundo todo (o conceito de família, aqui, inclui tios e primos, não só pais e filhos).
A maioria das pessoas com essa doença já diagnosticadas no Brasil descende de imigrantes portugueses e mora nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Porém, como há décadas os moradores desses estados migram para outras re-giões, moradores de outras regiões podem ter essa doença e nunca terem sido diagnosticados. Uma das linhas de trabalho em andamento examina essa possibilidade, em busca de uma delimitação precisa do alcance geográfico e populacional dessa forma hereditária de câncer.
A origem dessa doença já está definida. A sucessão de tumores independentes que caracteriza a síndrome de Li-Fraumeni resulta de alterações – ou mutações – no gene TP53, localizado no cromossomo 17. Cada célula humana contém duas cópias desse gene. Uma mutação que surja em uma das cópias nas células sexuais (nos testículos ou nos ovários) pode ser transmitida aos filhos, cada um com 50% de chance de herdar a mutação. O gene TP53 aciona a produção de proteínas de reparo do DNA, que a cada dia sofre cerca de 7 mil danos resultantes da radiação solar ou do ataque de agentes químicos. “Quando o gene está mutado”, diz Patricia, “os mecanismos de reparo funcionam de forma deficitária e a célula fica mais propensa a sofrer uma transformação maligna”.
Em 2006, as equipes de Maria Isabel, Patricia e Vargas, em colaboração com o grupo de Pierre Hainaut, da Agência Internacional para Pesquisa em Câncer, apresentaram a mutação predominante nas pessoas com Li-Fraumeni no Brasil. Chamada de R337H, essa alteração encontra-se em uma das extremidades do gene, enquanto em outros países outras mutações responsáveis pela síndrome estão na região central do gene.
Na trilha do gene – As equipes de São Paulo, Rio e Porto Alegre, em conjunto com colegas da França e da Itália, verificaram que as cidades com maior número de pessoas com essa mutação coincidiam com os pontos de parada dos tropeiros, como eram chamados os comerciantes portugueses que percorriam o Sul e o Sudeste nos séculos XVII e XVIII. A análise de 29 trechos de DNA de 12 pessoas não aparentadas portadoras da mutação indicou que todas essas pessoas tinham um ancestral comum europeu, como detalhado na Human Mutation de fevereiro de 2010. “É uma hipótese de trabalho a ser testada”, diz Vargas. “Ainda não investigamos outras regiões do país.” Maria Isabel acrescenta: “Estamos abertos a novas colaborações que possam nos ajudar a delimitar o alcance geográfico dessa síndrome”. Outra possibilidade é que a mutação R337H não seja exclusivamente brasileira, mas tenha sido subdiagnosticada em outros países. Por enquanto emergiram apenas dois casos, um português que morava na França e um brasileiro no Canadá.
A mutação R337H tem se mostrado bastante prejudicial: as mulheres que a têm estão sujeitas a um risco de até 97% – e os homens, de 73% – de desenvolver câncer ao longo da vida. Enquanto na população em geral o risco de apresentar um tumor antes dos 30 anos é de 1%, nos portadores dessa mutação pode ser de 50%. Descrita em 1969 pelos médicos Frederick Li e Joseph Fraumeni, essa síndrome pode se manifestar na infância por meio de tumores no cérebro, em glândulas como as adrenais, no sangue (leucemia) ou nos ossos e em tecidos moles como o músculo. Nos adultos, os tumores mais frequentes associados a essa síndrome são os de mama, intestino, ossos, sistema nervoso central e pulmão, leucemia, estômago, próstata e pâncreas.
(Carlos Fioravanti - Fasesp).
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