Gás valorizado

Projeto prevê o reaproveitamento de CO2 para cultivo de microalgas e cianobactérias    

© João Carlos Monteiro de Carvalho/USP
Reatores na USP produzem Spirulina com gás carbônico de usinas de açúcar e etanol

Depois do aproveitamento da palha e do bagaço da cana-de-açúcar – queimados em caldeiras para geração de energia elétrica – chegou a vez de o dióxido de carbono (CO2) resultante do processo de fermentação alcoó­lica nas usinas sucroalcooleiras ser utilizado como um subproduto de alto valor agregado. Pesquisa conduzida na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que esse gás pode ser reaproveitado para o cultivo de microrganismos fotossintetizantes, como microalgas e cianobactérias, com a possibilidade de serem empregados como matéria-prima em vários processos produtivos nas indústrias de alimentos, energia, medicamentos e cosméticos. Um exemplo é a Spirulina platensis, uma cianobactéria que pode ser utilizada como complemento alimentar porque é fonte de proteínas e vitaminas ou incorporada em alimentos e rações. Esses microrganismos também podem ser utilizados como pigmento, gerando corantes naturais, como clorofila e ficocianina.

Os microrganismos fotossintetizantes possuem ainda altos teores de ácidos graxos e poderiam colaborar com a matriz energética nacional na produção de biodiesel – já existem pesquisas em vários países sobre a obtenção de biodiesel a partir de microalgas. Outras aplicações estão relacionadas à obtenção de moléculas para utilização nas indústrias farmacêutica, cosmética e química. O trabalho, coordenado pelo farmacêutico João Carlos Monteiro de Carvalho, do Departamento de Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica, gerou um pedido de patente e foi realizado com a colaboração do professor Sunao Sato e de vários alunos, além do pesquisador Attilio Converti, da Universidade de Gênova, na Itália.

“Nosso trabalho aborda o uso imediato do CO2 no cultivo desses microrganismos, que utilizam a luz como fonte de energia, ou seu armazenamento para utilização futura”, explica Carvalho. Em âmbito mundial, as empresas que atualmente produzem esses microrganismos utilizam CO2 comprimido purificado em cilindros para viabilizar a produção. O estudo da USP mostrou que o gás produzido no reator de fermentação alcoólica das usinas pode ser injetado por meio de borbulhamento diretamente em outros reatores onde as microalgas e cianobactérias crescem. O CO2 tem dupla função. “Ele repõe o carbono consumido por esses microrganismos no processo de fotossíntese e, ao mesmo tempo, mantém o pH ao crescimento deles”, explica. Esse seria o emprego direto do CO2, que também poderia ser purificado e retido para uso em outro momento. O armazenamento se faria da seguinte forma: o gás carbônico capturado dos equipamentos de fermentação alcoólica passaria por um meio alcalino – como hidróxido de sódio (soda cáustica), por exemplo – e ao reagir com ele formaria bicarbonato ou carbonato de sódio, substâncias usadas no cultivo das microalgas. “Dessa forma, o gás carbônico poderia ser retido como uma solução alcalina líquida para ser utilizado posteriormente, como na entressafra da cana-de-açúcar, por exemplo, quando não há cana para ser processada e não existe produção de açúcar e álcool, além de CO2, nas usinas”, explica Carvalho.

Etanol em gramas – O crescimento dos microrganismos fotossintetizantes se faz dentro de reatores, que podem ser do tipo fechado ou aberto. No laboratório da USP foram realizados testes com reatores fechados de 3,5 litros, mas há registros na literatura científica de reatores abertos de 5.000 metros quadrados. “O tipo de reator em que a cianobactéria ou microalga cresce não afeta o processo, uma vez que, essencialmente, o princípio de atuação do dióxido de carbono é o mesmo.” O potencial de uso desse gás como matéria-prima para o cultivo desses microrganismos é imenso. Segundo o pesquisador, para cada molécula consumida de glicose na fermentação alcoólica do caldo da cana há a formação de duas moléculas de etanol e duas de CO2. Isso significa que para cada quilograma de etanol produzido há a formação de aproximadamente 0,96 quilograma de gás carbônico. Considerando que a produção anual nacional de etanol na safra 2008/2009 foi de 27,5 bilhões de litros – o equivalente a 21,7 bilhões de quilos –, 20,8 milhões de toneladas (t) de dióxido de carbono foram lançados na atmosfera (um litro de etanol equivale a 0,789 quilograma). Mesmo com quase a totalidade desse gás sendo consumida pela plantação de cana, inclusive aquele produzido pelos automóveis, no processo de fotossíntese é possível comparar esses números com a emissão de um ônibus a diesel circulando em uma grande cidade, que é de 100 t de CO2 por ano. Na cidade de São Paulo, por exemplo, é gerado cerca de 1 milhão de t anuais de dióxido de carbono com os 10 mil ônibus urbanos.

Além do CO2 gerado no processo de fermentação alcoólica, o projeto, que foi financiado pela Fapesp, também previu a reutilização do gás proveniente da queima de bagaço nas usinas. Nesse processo, a geração de dióxido de carbono é ainda maior, da ordem de 83 bilhões de quilos – isso se todo o bagaço fosse queimado para a produção de energia. Mas o CO2 nesse caso não é tão puro e teria que passar por um processo de limpeza e purificação para ser injetado nos reatores contendo microalgas e cianobactérias. O projeto, segundo Carvalho, levaria a uma redução de emissão de CO2 pelo país.

A ideia de aproveitar gases que contêm dióxido de carbono para o cultivo de microrganismos já foi objeto de estudo, na década de 1980, pelo professor Eugênio Aquarone, da mesma FCF-USP, cujo grupo, em trabalho com a Universidade de Firenze, na Itália, avaliou o efeito do CO2 da fermentação alcoólica na produção da Spirulina maxima. “Na nossa solicitação de patente, entretanto, apresentamos métodos que contribuem para a viabilização do uso do gás carbônico da fermentação do caldo de cana ou da queima do bagaço no cultivo de microrganismos fotossintetizantes”, diz Carvalho.

(Fasesp - Yuri Vasconcelos)

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