Danos colaterais

Medicamento usado no tratamento do lúpus prejudica a fertilidade

© Laura Daviña
Composto que controla a resposta imune reduz a produção de hormônios sexuais

O reumatologista pediátrico Clovis Artur Almeida da Silva se lembra com detalhes do dia, em 2002, em que a adolescente Maria das Flores (nome fictício), de 16 anos, o procurou no Instituto da Criança (ICr) do Hospital das Clínicas de São Paulo para contar que a mãe havia descoberto o preservativo que ela carregava na bolsa. Meses depois, já com 17 anos, Maria das Flores voltou a procurar Almeida, desta vez para lhe contar, antes de falar para qualquer outra pessoa, que tivera sua primeira relação sexual – e usado preservativo. Essa demonstração de confiança entre a paciente e o médico tem para Almeida uma dimensão especial. É que Maria das Flores era uma das jovens acompanhadas por ele no Ambulatório de Reumatologia do ICr com lúpus eritematoso sistêmico. Causado por uma disfunção do sistema imunológico disparada por defeitos genéticos, alterações hormonais, infecções virais e outros fatores ainda desconhecidos, o lúpus atinge uma em cada 100 mil pessoas (90% são mulheres), é quatro vezes mais comum em adultos do que em crianças e provoca lesões em diversos tecidos: danifica as articulações, causa vermelhidão e descamação da pele e, nos casos mais graves, afeta o sistema nervoso central e os rins.

Medicamentos mais eficientes surgidos nos últimos 15 anos vêm permitindo às pessoas com lúpus viver mais e com melhor qualidade. E também a namorar, casar e ter filhos. Acompanhando a mudança no perfil etário, Almeida decidiu conhecer melhor como essa doença autoimune, por ora ainda sem cura, influencia a vida das garotas e dos rapazes com idade entre 12 e 18 anos, que hoje representam quase 20% das pessoas com lúpus. Nos últimos 10 anos ele e pesquisadores de outras instituições de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e da Bahia avaliaram o desenvolvimento sexual de quase 400 crianças, adolescentes e adultos jovens com lúpus. O trabalho revelou que quem tem a doença alcança a maturidade sexual mais tarde e em geral é menos fértil. E levantou pistas de algo mais importante: boa parte do retardo no desenvolvimento sexual e da diminuição da fertilidade não é consequência da enfermidade, mas dos medicamentos usados para mantê-la sob controle. “Revelamos efeitos importantes da medicação tanto no caso das meninas como no dos rapazes”, afirma Almeida.

Uma das alterações que a medicação provoca é o atraso na idade em que ocorre a primeira menstruação: a menarca, que representa o início da idade fértil feminina. Almeida comparou a idade em que 30 adolescentes com lúpus tiveram a menarca com a idade em que ocorreu a primeira menstruação de 30 garotas sem o problema. No primeiro grupo, a menarca aconteceu em média por volta dos 13 anos, quase dois anos mais tarde do que entre as adolescentes sem lúpus, segundo artigo publicado em 2009 na revista Lupus. “O vilão da história são os corticoides [medicamentos anti-inflamatórios] usados no tratamento, que tornam o amadurecimento sexual feminino mais lento”, explica o pesquisador do ICr.

Interessado em ampliar e aprofundar essa investigação, Almeida conseguiu a colaboração de equipes de outras 11 universidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia e avaliou 298 adolescentes com lúpus. Em seguida, confrontou o resultado com o de um trabalho anterior feito com 2.500 garotas saudáveis. A comparação mostrou que 12% das meninas apresentavam interrupção repentina na menstruação (amenorreia) que costumava durar entre quatro e sete meses. Dois fatores explicam a disfunção: a gravidade da própria doença e o efeito colateral dos medicamentos. “No lúpus os anticorpos produzidos pelo organismo podem causar inflamação nos ovários e alterar os níveis dos hormônios sexuais”, conta Almeida. Somadas a esse efeito, doses elevadas de corticoides reduzem o funcionamento da glândula hipófise, localizada na base do cérebro, diminuindo a secreção do hormônio folículo estimulante (FSH) e do hormônio luteinizante (LH), responsáveis pela maturação dos óvulos.

O estudo também indicou que outro medicamento usado para controlar o lúpus, o imunossupressor ciclofosfamida, que reduz a atividade inflamatória da doença, elevou o risco de aborto. A provável explicação para esse efeito – observado entre garotas que engravidaram durante o tratamento, apesar da recomendação de que usassem métodos contraceptivos – é que a ciclofosfamida inibe a divisão celular e interfere no desenvolvimento do embrião. Almeida verificou que, mesmo sem o uso do imunossupressor, as adolescentes com lúpus têm menos óvulos do que as sem a doença. Apresentado em 2007 na Lupus, o trabalho mereceu um editorial no Journal of Rheumatology, assinado por Miriam Kaufman, uma das principais especialistas no mundo em medicina de adolescentes. “Os autores [brasileiros] alertam para a necessidade de as jovens serem orientadas em suas decisões relacionadas à vida sexual”, escreveu Miriam.

Outro efeito indesejado da ciclofosfamida foi o aumento dos casos de uma infecção por fungo: a candidíase vaginal, identificada em 14% das garotas com lúpus. “A candidíase deve ser tratada porque pode se disseminar pelo corpo”, conta Almeida.


(Fasesp - Francisco Bicudo)

Postar um comentário

0 Comentários