Ataque a veias e artérias indesejadas pode combater cegueira e câncer.
Imagine veias e artérias que se ramificam, crescem, se dividem, se espalham. Normal durante o desenvolvimento de um embrião, na idade adulta essa formação e proliferação de vasos sanguíneos podem estar na origem de problemas graves, como cegueira e câncer. O bioquímico Ricardo Giordano, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), vem encontrando formas de localizar – e exterminar – esses vasos sanguíneos que brotam fora de hora e de lugar.
Ele desenvolveu um peptídio (fragmento de proteína) que reúne qualidades altamente desejáveis para um fármaco em potencial contra esse problema: a molécula encontra vasos que não deveriam estar sendo produzidos – e faz isso driblando as defesas do organismo, que não conseguem reconhecer o peptídio como uma substância intrusa a ser combatida. A molécula, conhecida como D(LPR) por ser composta por leucina, prolina e arginina, nasceu do trabalho desenvolvido por um casal de pesquisadores brasileiros que juntos coordenam um laboratório no Instituto do Câncer M.D. Anderson, no Texas, Estados Unidos: a bióloga molecular Renata Pasqualini e o médico oncologista e pesquisador Wadih Arap. Ao longo de 10 anos de pós-doutorado nesse fervilhante ambiente equipado com aparelhos, mentes e motivação voltados para descobrir proteínas que atuam em doenças humanas, Giordano usou o conceito de CEP desenvolvido por Renata e Arap: cada tipo de célula, em cada tecido do organismo, tem uma assinatura molecular única que pode ser reconhecida por peptídios específicos, assim como o número 05415-012 designa um espaço de duas quadras onde o carteiro encontra a redação que produz esta revista.
E deu certo, como mostra o artigo publicado em março na revista científica PNAS. Para construir rastreadores que escapassem ao radar do sistema imunológico, Giordano usou um truque conceitualmente simples baseado nas duas categorias de peptídios, caracterizadas por terem determinados grupos químicos voltados para a direita (D) ou para a esquerda (L). “A natureza escolheu fazer proteínas na forma L”, explica o bioquímico. Por isso ele optou pela forma espelhada D, que por não existir na natureza não é reconhecida pelo sistema de defesa do organismo. É como se os peptídios que circulam no sangue e nas células tivessem todos a forma de mãos esquerdas. As enzimas encarregadas de destruir as impurezas, que seriam como luvas específicas para mãos esquerdas, deixariam escapar as mãos direitas. Assim, o D(LPR) foge à detecção sem deixar de cumprir a função de seu gêmeo espelhado, o RPL.
A função, no caso, é inibir a produção do fator de crescimento vascular endotelial (VEGF), principal responsável pela proliferação de vasos sanguíneos. “Mas não se pode inibir por inteiro a atividade desse fator de crescimento: a função basal do VEGF é importante para a manutenção dos vasos”, afirma Giordano. Ele buscou então uma mão direita que conseguisse afetar apenas a geração de novos vasos, função desempenhada com sucesso pelo D(LPR), conforme mostrou no artigo da PNAS para casos de retinopatia da prematuridade.
Causa da deficiência de visão do músico Stevie Wonder, a retinopatia da prematuridade atinge sobretudo bebês que precisam passar um tempo na incubadeira ao nascer. Como nesse aparelho a pressão de oxigênio é muito alta, cerca de 70%, quando a criança sai para a atmosfera natural, com 20% de oxigênio, as células da retina interpretam a situação como falta de oxigênio e produzem mais VEGF. O resultado é uma teia vascular na retina, densa a ponto de impedir a visão. Giordano mostrou que o peptídio D(LPR) consegue encontrar essa formação de vasos indesejados reconhecendo moléculas específicas na membrana da célula vascular. “Por ser pequeno, o peptídio tem produção mais barata e a possibilidade de efeitos colaterais é pequena, porque a parte externa da célula é a mais seletiva e por isso a ação é localizada.”
Quando se encaixa na superfície da célula, o D(LPR) perturba a cadeia de ativação do VEGF e assim inibe a proliferação vascular excessiva. Nos testes feitos por Giordano, o sistema foi bem- -sucedido em células em cultura e também em camundongos vivos. Por ser pequeno, estável e solúvel em água, o peptídio desenvolvido pelo bioquímico tem tudo para ser um sucesso aos olhos de quem tem problemas de visão desse tipo, caso chegue de fato a dar origem a um medicamento. Além da retinopatia que ataca bebês prematuros, a proliferação vascular na retina também provoca a degeneração macular do tipo molhado, principal causa de perda de visão relacionada ao envelhecimento. Um medicamento à base de D(LPR) poderia ser aplicado na forma de colírio, o que seria um alívio em relação ao tratamento atual para degeneração macular, feito por meio de injeções aplicadas diretamente no olho. Wadih Arap já precisou tomar uma injeção no olho por causa de um descolamento da retina, e avisa: é péssimo.
Bomba rastreadora - No laboratório que criou no ano passado, quando voltou do Texas e foi contratado pela USP, Giordano vem buscando em camundongos novas regiões do VEGF que possam servir como alvos terapêuticos. Os benefícios podem se estender muito além das doenças da visão. A proliferação vascular, ou angiogênese, estimulada pelo VEGF, também é o que caracteriza tumores malignos: eles secretam fatores de angiogênese para estimular a produção de vasos que alimentem as massas de células cancerosas. “Se conseguirmos combater esse processo que normalmente não acontece em adultos, teremos mais uma arma contra o câncer”, prevê o pesquisador.
Atacar o VEGF não é ideia nova. Já existem medicamentos – aprovados e em uso – à base de anticorpos contra esses fatores, mas, segundo Giordano, eles não se mostraram tão eficazes quanto se esperava e causam efeitos colaterais indesejáveis, problema que ele espera evitar com ação direcionada do peptídio que desenvolveu. “Há centenas de laboratórios no mundo procurando desenvolver esse tipo de medicamento, é uma corrida.” Para ele, mais importante do que chegar primeiro é desenvolver um fármaco no Brasil. Não só para ter medicamentos mais acessíveis, mas também para ter propriedade intelectual sobre eles, que podem contribuir para novas pesquisas.
Uma das prioridades de Renata e Arap agora é continuar os testes para desenvolver um medicamento baseado no peptídio desenvolvido pelo colaborador da USP. “Queremos fazer em São Paulo um braço da companhia que está licenciando a propriedade intelectual do M.D. Anderson, para conseguirmos parcerias e investimento para o desenvolvimento de drogas”, conta a pesquisadora. Uma vantagem de fazer os testes clínicos aqui é já testar a sua eficácia na população brasileira, uma validação independente dos efeitos da droga num número maior de pacientes. No futuro, o D(LPR) pode ser eficaz também contra os vasos que irrigam tumores, mas o grupo priorizou estudar as doenças oculares para evitar a imensa competição em torno da guerra contra o câncer enquanto, nas palavras de Renata, “existe um vácuo em termos de tratamentos para a retina”.
Matéria completa: http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=4173&bd=1&pg=1
Fasesp.
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