Experimentos realizados nos últimos anos demonstram que determinadas bactérias, em determinadas condições, poderiam sobreviver a uma aventura espacial.
Quantos escudos protetores você precisaria para sobreviver a uma viagem interplanetária de milhões de anos, agarrado a um pedaço de rocha, congelado, sem água nem oxigênio e bombardeado incessantemente por radiação ultravioleta? Se você é uma bactéria da espécie Deinococcus radiodurans, uma superfície rugosa e uma camada de poeira já seriam suficientes. É o que indica o primeiro estudo experimental de astrobiologia feito por cientistas brasileiros.
Os resultados, publicados na última edição da revista científica Planetary and Space Science, dão suporte à teoria da panspermia, segundo a qual a vida pode não ter se originado na Terra, mas em outro ponto do universo, e caído aqui já pronta, trazida por um cometa, meteorito ou coisa parecida.
Para isso, uma forma de vida primordial - representada nos experimentos por bactérias - precisaria sobreviver às intempéries do espaço por milhares ou até milhões de anos, dormente, para então renascer na superfície de algum planeta amigável. Como a Terra.
Por mais difícil que isso possa parecer, vários experimentos realizados nos últimos anos demonstram que determinadas bactérias, em determinadas condições, poderiam sobreviver a uma aventura espacial dessa natureza. A isso soma-se, agora, o trabalho do biólogo brasileiro Ivan Gláucio Paulino-Lima, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele submeteu colônias de Deinococcus radiodurans a condições similares às encontradas no espaço e comprovou que elas sobrevivem, com relativa facilidade, a doses altíssimas de radiação.
"Uma mínima proteção contra raios ultravioleta é suficiente para aumentar significativamente a sobrevivência desses microrganismos", afirma Lima, que fez o trabalho para sua tese de doutorado. "Do ponto de vista da biologia, os resultados não são tão extraordinários. Colocados num contexto astronômico, porém, as implicações tornam-se importantíssimas."
A mais importante delas é que microrganismos primitivos resistentes, semelhantes à Deinococcus radiodurans, poderiam, sim, sobreviver a uma viagem interplanetária, presos a grãos de poeira ou rocha (micrometeoritos). A simulação foi feita utilizando o acelerador de partículas do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, capaz de produzir feixes contínuos de radiação em vários comprimentos de onda e diferentes intensidades.
As bactérias foram colocadas sobre uma fita de carbono, cuja superfície rugosa forma uma série de "caverninhas" microscópicas nas quais as bactérias podiam se esconder da radiação - algo bem semelhante à superfície de um micrometeorito, segundo os pesquisadores. Associado a isso, bastou uma camada de poeira, matéria orgânica ou um leve empilhamento de células para que as bactérias mais abaixo sobrevivessem.
No teste mais rigoroso, as bactérias foram expostas a 16 horas contínuas de radiação ultravioleta de vácuo, numa dose equivalente ao que elas receberiam ao longo de 1 milhão de anos viajando no espaço.
"É uma radiação de altíssima energia, muito mais forte do que os raios ultravioleta que chegam à superfície da Terra", aponta a pesquisadora Claudia Lage, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, que orientou o trabalho de Lima na UFRJ. A atmosfera terrestre filtra os comprimentos de onda mais nocivos da radiação solar. Caso contrário, a superfície do planeta seria esterilizada.
Em média, só 2% das bactérias sobreviveram às sessões de radiação. Parece pouco, mas numa amostra de 100 mil células, isso significa 2 mil bactérias. Mais do que suficiente para inseminar um planeta, como gostam de dizer os astrobiólogos. "É praticamente uma invasão alienígena", compara Claudia.
Na surdina
Uma invasão tão silenciosa que passaria facilmente despercebida mesmo nos dias de hoje. Além de sobreviver às intempéries do espaço, para desembarcar aqui, os micróbios extraterrestres precisariam sobreviver à entrada na atmosfera.
Em 2003, uma rachadura no escudo protetor do ônibus espacial Columbia foi suficiente para destruir completamente a nave, matando seus sete tripulantes. Da mesma forma, o calor criado pelo atrito com o ar seria mais do que suficiente para pulverizar qualquer organismo preso à superfície de um meteoro ou outro meio de transporte espacial.
Por isso, os pesquisadores especulam que a "invasão" teria ocorrido por meio de micrometeoritos - fragmentos microscópicos de rocha -, grandes o suficiente para transportar bactérias, mas pequenos o suficiente para passar pela atmosfera sem se aquecer. Estudos feitos na Antártida indicam que até 10 mil toneladas de micrometeoritos caem anualmente sobre a Terra, segundo o astrônomo Eduardo Janot Pacheco, do Instituto de Astronomia (IAG) da Universidade de São Paulo, que também assina o estudo. "Formas de vida alienígenas podem estar caindo sobre o planeta agora mesmo", especula Janot.
A evidências fósseis mais antigas de vida microbiana no planeta datam de 2,5 bilhões de anos, segundo Claudia. "O planeta já era perfeitamente habitável naquela idade", diz ela, caso algum microrganismo alienígena tenha mesmo desembarcado por aqui naquele momento.
Talvez a própria Deinococcus radiodurans - que seria, neste caso, o ancestral comum de todas as formas de vida na Terra -, ou algo parecido com ela.
Conan, a bactéria
A Deinococcus radiodurans foi selecionada para o estudo porque, como diz seu nome, é uma espécie naturalmente resistente à radiação extrema. A razão evolutiva para isso, ninguém sabe, pois ela aguenta doses muito mais elevadas do que se registra em qualquer ambiente da Terra. E também é resistente à desidratação - outra característica necessária para sobrevivência no espaço.
É encontrada em todo lugar, desde desertos até comidas enlatadas. Já apareceu no Guiness Book como "a bactéria mais durona do planeta", e às vezes atende pelo apelido de Conan. "Ainda bem que não é uma espécie patogênica, senão estaríamos em apuros", conclui Janot.
''Não há razão pela qual a vida não começaria aqui''
A hipótese da panspermia é plausível, mas desnecessária para explicar a origem da vida na Terra, segundo o químico Richard Shapiro, da Universidade de Nova York (NYU). "Não há nenhuma razão pela qual a vida não poderia ter começado aqui mesmo", disse o pesquisador ao Estado.
Segundo ele, apesar das improbabilidades e das dificuldades de reproduzir esse processo em laboratório, não há nenhum fator químico ou biológico que proíba a formação espontânea de vida na natureza, via interação de átomos e moléculas. "Nós estamos aqui, então aconteceu. Em algum lugar, de alguma forma, moléculas orgânicas se juntaram para formar uma vida primitiva."
A partir daí, começa o capítulo mais familiar da história, em que a evolução transforma e diversifica essa vida primitiva em espécies cada vez mais complexas, dando origem a todos os seres vivos que já habitaram a Terra.
Muitas dúvidas, porém, permanecem sobre o capítulo inicial. Não apenas sobre o "como", mas também sobre o "onde" teria começado a vida. Há quem diga que foi na borda de chaminés submarinas, em que água fervente expelida do interior da terra se mistura com a água gélida do fundo do oceano. Há quem diga que foi em crateras vulcânicas ou em fendas no gelo. "Há muitos ambientes propícios para a formação da vida."
Para confirmar a hipótese da panspermia, diz Shapiro, seria preciso achar micróbios iguais aos da Terra congelados em cometas, meteoros ou outro planeta do sistema solar.
''Somos parte de uma corrente que conecta a Terra ao resto da galáxia'', entrevista com Chandra Wickramasinghe, diretor do Centro Cardiff de Astrobiologia
"A panspermia não é apenas possível, ela é inevitável", diz o matemático Chandra Wickramasinghe, diretor do Centro Cardiff de Astrobiologia, da Universidade Cardiff, na Grã-Bretanha. Um dos pioneiros da teoria, ele conversou com o Estado sobre vida no universo:
- Quais são as evidências a favor da panspermia?
As evidências vêm da biologia, da astronomia e da geologia. Os dados biológicos mostram que o surgimento da vida numa poça d"água da Terra não é plausível. É necessário um sistema conectado de matéria que se estenda por grande parte do universo. Os dados astronômicos sobre moléculas orgânicas no espaço são melhor explicados como detritos de bactérias. Considerando que a transformação de não vida em vida é quase impossível, é muito mais provável que a vida tenha se espalhado de um único ponto onde se formou pela primeira vez do que tenha se formado várias vezes em diferentes lugares. Já a geologia nos diz que a primeira evidência de vida na Terra é de 3,8 bilhões a 4 bilhões de anos atrás, quando o planeta estava sendo pesadamente bombardeado por cometas.
- Não há nada que impediria a ocorrência da panspermia? Algo que a ciência ainda não provou ser possível?
A panspermia seria inibida apenas se bactérias fossem tão frágeis que não conseguissem sobreviver à viagem espacial dentro de um sistema solar. Há uma fartura de evidências que contradizem isso. Os dados brasileiros são mais uma confirmação de que certas bactérias são resistentes à radiação cósmica.
- Ainda que a panspermia seja possível, como podemos saber se ela ocorreu de fato aqui?
O fato de a vida ter começado 3,8 bilhões de anos atrás, numa época em que a Terra era bombardeada por cometas, é uma indicação forte de que cometas trouxeram vida para cá. Nesse caso, seria possível mostrar que cometas em órbita ainda carregam vida microbiana, e que micróbios continuam a ser introduzidos na Terra por cometas até os dias de hoje.
- Onde, então, teria surgido a vida? Em outro ponto do sistema solar, da galáxia, do universo?
Acredito que a galáxia inteira é uma biosfera única, interconectada. Genes microbianos são continuamente intercambiados entre sistemas planetários. Assim, a evolução darwiniana ocorre em escala galáctica. Somos parte de uma corrente que conecta a vida na Terra aos lugares mais distantes da galáxia e também além dela. Nossos ancestrais genéticos ainda se escondem entre as estrelas.
(Herton Escobar - O Estado de SP)
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