Na refinaria de biomassa, tudo se transforma

Resíduos são convertidos em produtos nobres como energia, biocombustíveis e químicos

Parece coisa de alquimista: transformar resíduos indesejáveis como lixo urbano, bagaço de cana, casca de arroz, pneus e até lodo de esgoto em combustíveis, plástico e inúmeras matérias-primas de uso industrial. A transformação não só é possível como o Brasil já tem tecnologia disponível para isso.
O conceito de biorrefinaria ou refinaria de biomassa ainda pode soar novo aos ouvidos brasileiros. A lógica de funcionamento é semelhante à de uma refinaria de petróleo, de onde saem vários produtos, como nafta, combustíveis e gás natural.

Em uma biorrefinaria é possível ter biocombustíveis, biopolímeros e biogás, além de geração de energia elétrica, tendo resíduos variados como matéria-prima.

Os estudos sobre seu funcionamento vêm sendo conduzidos no país há pelo menos duas décadas. Mas agora estão saindo da esfera acadêmica. Há pelo menos dois empreendimentos com esse perfil, um no Polo de Camaçari, na Bahia, e outro em Lorena, no interior de São Paulo. Há ainda um projeto semelhante, em fase de estudos, no Paraná.

Em Lorena, a 180 quilômetros da capital paulista, um dos expoentes da tendência é a RM Materiais Refratários. Há 21 anos a empresa vem trabalhando na tecnologia que chamou de Probem - sigla para Programa de Biomassa, Energia e Materiais -, capaz de transformar, por meio de processos termoquímicos, a biomassa, tanto vegetal quanto oleaginosa, em uma gama extensa de produtos químicos de grande uso na indústria.

Os resíduos sólidos são, na primeira etapa do processo, inseridos em um reator, que faz a "quebra" das moléculas da biomassa. Desse processo resulta um componente sólido, a celulignina, um pó que dá origem a um tipo de gás, que pode ser queimado em uma caldeira para cogeração de energia elétrica.

O gás pode também ser usado como matéria-prima para a transformação em produtos químicos, como amônia, ureia, metanol e cinza fertilizante, por meio de uma tecnologia conhecida como GTL (Gas to Liquid), largamente empregada nas refinarias de petróleo. Nesse caso, o produto varia conforme o catalisador utilizado no processo.

"Para cada tipo de biomassa, há uma rota tecnológica. Mas todas têm como ponto de partida a pré-hidrólise, que é feita em um reator que emprega finas chapas de material refratário em seu interior", explica João Carlos Ferreira, engenheiro químico que trabalha no aperfeiçoamento da tecnologia Probem. O intrincado sistema também é objeto de estudo de sua tese de doutorado.
Até mesmo resíduos de natureza oleaginosa, como pneus, lodos de estações de tratamento de esgoto e dejetos de animais, podem ser transformados em matérias-primas nobres.

A alquimia começa pela hidrólise dos materiais, em um processo de conversão a uma temperatura de aproximadamente 400°C, que dá origem a um componente sólido (espécie de carvão) e um óleo. Ambos dão origem a novos produtos: fertilizante para uso agrícola, negro-de-fumo (insumo para corantes) e óleos aromáticos. "Não há resíduo que não possa ser transformado", diz Ferreira.

Solução para o lixo. A tecnologia chamou a atenção de um investidor, a Senergen Energia Renovável, que adquiriu 50% de participação na empresa. "O desenvolvimento e a expansão da tecnologia podem resolver definitivamente o problema do lixo urbano e reduzir a dependência do petróleo", diz Roberto Paschoali, sócio da Senergen.

Atualmente, um reator funciona em Alegrete (RS), onde processa 90 toneladas por dia de casca de arroz, resíduo abundante na região. Como resultado do processo, há geração de energia elétrica e produção de pó de sílica, vendido para a indústria de cosméticos. Paschoali já negocia a venda da tecnologia para cerca de 30 indústrias - 10 estão em estágio avançado. "O momento é de transição para uma nova ordem econômica e ecológica. Em alguns anos, as biorrefinarias serão mais comuns do que pensamos", diz.

Polo de Camaçari avança em estudo de biomateriais

O polo petroquímico de Camaçari, na Bahia, também está avançando nas pesquisas com biorrefinarias. De lá estão saindo estudos para aplicações práticas de biocompósitos ou biomateriais (de origem vegetal), que devem chegar ao mercado ainda este ano.

As pesquisas mais adiantadas estão sendo realizadas pela Cetrel, empresa que presta serviços de tratamento de resíduos para o polo. Há quatro anos começaram os estudos para transformar uma boa parte dos dejetos industriais em novas matérias-primas. Na prática, os biocompósitos, que têm origem no bagaço da cana-de-açúcar, podem ser combinados a outros materiais, como plástico pós-consumo e cinzas de processos de incineração.
O resultado é um material resistente, que pode ser moldado em novos produtos. "É possível fazer de dormentes de estrada de ferro a manequins de vitrines", explica Ney Silva, presidente da Cetrel. Além disso, a empresa fechou parcerias para a produção de chapas para banheiros químicos e placas de aquecimento solar.

As pesquisas brasileiras sobre biorrefinarias chamaram a atenção da Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia. O organismo está estimulando a criação de "clusters" de empresas agroindustriais, para que seus resíduos sirvam de matéria prima para biorrefinarias com zero emissão de carbono.

O projeto, chamado de The Sustainable Carbon Negative Biorefinery of the Future - algo como Refinaria Sustentável do Futuro com Emissão Zero de Carbono -, inclui as Universidades de Ghent, na Bélgica, Manchester, na Inglaterra, e Toulouse, na França, além de um grupo de quatro empresas europeias e a brasileira Cetrel.

(Andrea Vialli)

(O Estado de SP, 24/3)

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