
Estudo de brasileiros diz que a sífilis deve ter surgido entre 5 mil e 16.500 anos atrás, muito antes da descoberta das Américas pelos europeus
Um trabalho da bióloga Sabine Eggers, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), e de quatro alunos de pós-graduação refuta uma ideia ainda prevalente no meio científico e na sociedade em geral: a teoria de que a sífilis, doença sexualmente transmissível causada pela bactéria Treponema pallidum, teria aparecido nas Américas há cerca de 500 anos e só teria sido levada para a Europa por Cristóvão Colombo e os primeiros desbravadores do Novo Mundo. Segundo o estudo, que acaba de ser publicado na edição eletrônica da revista científica Plos Neglected Tropical Diseases, a doença deve ter surgido entre 5 mil e 16.500 anos atrás, muito antes de os europeus terem desembarcado por aqui. "Mas não podemos afirmar se a sífilis venérea apareceu ou não nas Américas", diz Sabine, especialista em paleopatologia, o estudo das doenças em populações do passado.
Confrontando as evidências científicas de duas áreas de estudo, da paleopatologia e da genética molecular, os pesquisadores testaram as três teorias mais difundidas sobre a origem da sífilis: a hipótese colombiana, a mais conhecida de todas, segundo a qual a doença emergiu nas Américas, há cerca de meio milênio, e em seguida foi levada à Europa pelos colonizadores europeus; a hipótese pré-colombiana, que defende a ideia de que a sífilis e outras patologias causadas por treponemas já estava presente tanto no Velho como no Novo Mundo milhares de anos antes da época das Grandes Navegações, sendo os primeiros casos de doenças desse tipo originários da Ásia ou da África 17 mil anos atrás; e a hipótese que advoga a existência de doenças desencadeadas por treponemas em todo o mundo desde sempre, há talvez milhões de anos, tendo diferentes grupos sociais, ao longo da história, apresentado distintas manifestações desse grupo de doenças em função das condições geográficas, climáticas e do seu desenvolvimento social. No final do trabalho, concluíram que a teoria mais plausível era a segunda, embora não tenham fechado posição sobre o berço geográfico da sífilis.
Causadora de epidemias fatais na Europa do final do século XV e início do XVI, na época das Grandes Navegações, quando era incurável, de difícil diagnóstico (era facilmente confundida com outras doenças, como a lepra) e sua virulência era alta, a sífilis tornou-se facilmente tratável no século passado depois do advento dos antibióticos, sobretudo da penicilina. Apesar disso, ainda hoje ocorrem anualmente cerca de 12 milhões de casos e 150 mil mortes por sífilis venérea ou congênita, também causada pelo mesmo patógeno, sobretudo em regiões pobres como a África, o Sudeste Asiático e em menor escala na América Latina. No Brasil, cerca de um milhão de casos da doença são registrados anualmente. Se não for medicado, o doente de sífilis desenvolve graves lesões na pele e nas mucosas, dolorosas alterações ósseas e pode morrer.
As conclusões do artigo científico se amparam numa abordagem interdisciplinar, que levou em conta dados de duas áreas do conhecimento cujos especialistas normalmente não trabalham em conjunto. Primeiro, os pesquisadores brasileiros montaram um mapa-múndi com os 128 registros de sífilis e de outras patologias similares causadas por bactérias do gênero Treponema em ossadas humanas e de hominídeos com datação superior a 500 anos (portanto, pré-colombianas) descritos na literatura científica. Localizaram no globo terrestre quando e onde teriam ocorrido esses antigos casos de sífilis e de outras treponematoses (doenças com a pinta, o begel e o bouba). Duas dessas ocorrências pré-colombianas de sífilis se situam no Brasil, em ossadas encontradas no Sambaqui de Jabuticabeira II, próximo ao litoral de Santa Catarina, com idade estimada de 3 mil anos, e num sambaqui fluvial de 5 mil anos escavado no Vale do Ribeira, em São Paulo.
Dos 128 registros de ossos antigos que aparentemente carregam as marcas da sífilis e de outras treponematoses, 39 ocorrências foram descartadas pela equipe da USP nas análises estatísticas. "Excluímos os casos mais duvidosos de nossas análises", diz a bióloga Ana Maria Fraga, uma das alunas de pós-graduação que participaram do estudo. Tratava-se de registros em que o diagnóstico clínico da doença ou a idade da ossada era questionável. Sobraram então 89 casos de sífilis ou treponematoses mais ou menos confiáveis, de acordo com os registros paleopatológicos. Desses, mais de um terço (33 casos) eram de esqueletos achados no Velho Mundo. Portanto, embora as ocorrências de sífilis há mais de 500 anos na Europa não sejam majoritárias, há informações relativamente fartas na literatura científica indicando que parece ter havido casos da doença tanto no Novo como no Velho Mundo bem antes de Colombo aportar nas Américas.
O segundo passo da equipe da USP foi tentar reconstituir a história evolutiva da Treponema pallidum a partir da análise de 21 genes ou regiões intergênicas desse patógeno e de outros treponemas. "Apenas com os registros da paleopatologia não é possível resolver a questão da origem geográfica e no tempo da sífilis", comenta Sabine. "Por isso, usamos esse tipo de dado para calibrar nossas análises de genética molecular." Esse tipo de estudo se vale de uma característica do DNA para construir cenários a respeito do surgimento de uma espécie, seja ela o homem ou uma bactéria. Ao longo de sua história evolutiva, de geração em geração, o material genético de um organismo acumula mutações. Tendo uma ideia ainda que aproximada de qual é a taxa de ocorrência de mutações no DNA de uma espécie, os biólogos moleculares acreditam ser possível estimar quando esse organismo surgiu. "O interessante desse trabalho foi ter juntado essas duas áreas distintas para estudar a origem de uma doença", afirma a bióloga Kelly Nunes, outra estudante da pós da USP que participou do estudo.
Foi com essa ferramenta que os pesquisadores brasileiros calcularam quando poderia ter surgido o agente causador da sífilis. Dessa forma, puderam colocar lado a lado a versão da história da doença que parece emergir do estudo de esqueletos antigos com sífilis e a historia evolutiva do patógeno contada a partir da análise da variabilidade genética presente no DNA de bactérias do gênero treponema. Quando fizeram esse confronto dos dois lados da história, ganhou consistência a tese de que a sífilis surgiu entre 5 mil e 16.500 anos. O registro mais antigo de uma treponematose num hominídeo remonta a 1, 6 milhão de anos, de acordo com uma ossada de Homo erectus que exibe sinais de ter tido bouba, uma treponematose similar à sífilis. O problema é que, se esse grupo de doenças tivesse emergido numa época tão remota, muito antes do surgimento do homem moderno (Homo sapiens), a Treponema pallidum teria que apresentar uma taxa anual de acúmulo de mutações em seu genoma dez vezes menor do que outras bactérias, como a Escherichia coli. Isso é muito improvável, segundo os pesquisadores da USP. Caso a doença tenha se originado há apenas 500 anos, na época de Colombo, como defende a hipótese mais difundida, o patógeno da sífilis teria que exibir, segundo os cálculos dos cientistas brasileiros, uma taxa de incorporação de mutações 100 vezes maior do que a de outras bactérias. De novo, esse ritmo de acúmulo de alterações num DNA bacteriano parece fora de qualquer padrão.
Restou, por fim, averiguar se uma hipótese intermediária sobre o surgimento da sífilis faria sentido tanto do ponto de vista da paleopatologia como da genética molecular. Essa foi a tese que mais convenceu os pesquisadores da USP. Se as treponematoses tiverem surgido entre 5 mil e 16.500 anos, sendo esta última data tida como o momento em que o Homo sapiens começou a colonizar as Américas, o patógeno da doença teria que apresentar uma taxa de incorporação de mutações mais ou menos semelhante à de outras bactérias. Na verdade, segundo os cálculos da equipe da USP, as primeiras treponematoses podem ter surgido até um pouco antes, por volta de 90 mil anos atrás. O problema é que, se essa ideia for verdadeira, alguém terá de encontrar ossadas humanas exibindo alguma doença causado por treponema. O registro mais antigo de treponematose no homem moderno bate na casa dos 15 mil anos. "Se nossa análise filogenética estiver correta, esperamos encontrar evidências de treponematoses, incluíndo uma Eva com sífilis, em ossos de exemplares de nossa espécie e até nos neandertais com idade estimada em 88 mil anos", diz Sabine.
Fasesp- Marcos Pivetta
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