Grupo da UFRJ propõe que fenômeno pode ter relação com complexidade cerebral e variabilidade do órgão vista de pessoa para pessoa.
Ninguém imaginaria que arrancar pedaços substanciais do DNA das células pudesse ser importante para a correta estruturação do cérebro, mas é justamente isso que o trabalho de pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) anda demonstrando. A degola de material genético parece estar ligada à divisão de tarefas nos muitos tipos de células do sistema nervoso.
Ainda é difícil afirmar exatamente o que os achados significam, mas Stevens Rehen, Bruna Paulsen e seus colegas da UFRJ já flagraram o fenômeno estudando dois tipos diferentes de células-tronco, as embrionárias (como o nome diz, oriundas de embriões no estágio inicial de seu desenvolvimento) e as iPS (células adultas que, manipuladas em laboratório, retornam a um estado que lembra muito o embrionário).
A alteração detectada pela equipe é conhecida como aneuploidia, forma indigesta de dizer que as células ditas aneuploides possuem um número irregular de cromossomos, as estruturas parecidas com carretéis que carregam o DNA.
Como regra geral, toda célula do corpo humano deveria carregar 23 pares de cromossomos. Cada membro do par é "doado" respectivamente pelo pai e pela mãe aos filhos. A aneuploidia consiste na presença de pares "mancos", sem um dos membros, ou "excessivos", formados por trios, por exemplo. Há doenças importantes ligadas à aneuploidia, como a síndrome de Down (cujos efeitos, aliás, vão muito além do desenvolvimento mental do portador).
Lado bom
A hipótese de trabalho de Rehen e companhia, no entanto, reabilita parcialmente o número irregular de cromossomos. "A aneuploidia também pode funcionar para o bem, para moldar o cérebro de uma forma única", afirma o pesquisador, que foi o primeiro a detectar o fenômeno no sistema nervoso, em pesquisa de 2001. Até 30% dos neurônios do córtex (a área mais desenvolvida e complexa do cérebro em seres humanos) podem ser aneuploides.
Mais recentemente, Rehen topou outra vez com a aneuploidia ao estudar como as células-tronco embrionárias, responsáveis por construir todo o organismo humano, passam pelo processo de diferenciação (especialização) que as transforma em neurônios. A surpresa é que, quando viram neurônios, as células também perdem cromossomos. Coincidência ou relação de causa e efeito?
"Chegamos a pensar que a aneuploidia poderia ser efeito do ácido retinoico [substância empregada para induzir as células a se especializar]", diz Rehen. Não era, a julgar por experimentos posteriores. O mesmo fenômeno foi verificado enquanto as células iPS, também com propriedades embrionárias, foram "convencidas" a virar neurônios, afirma ele.
Os pesquisadores ainda estão longe de bater o martelo em relação a esse paradoxo. A próxima fase dos experimentos deve envolver o caminho oposto: em vez de induzir especialização celular e observar aneuploidia, Rehen e companhia planejam arrancar cromossomos das células e ver se isso as ajuda a se diferenciar em neurônios.
Ainda é cedo para dizer aonde essas pistas conduzem, mas não é impossível que a aneuploidia esteja ligada à grande complexidade celular do cérebro, que está repleto de neurônios de todos os tipos e especialidades. E talvez ajude a elucidar por que, afinal, nenhuma cabeça pensa igual à outra.
"Ele poderá até ajudar a explicar a diferença que existe entre o comportamento de gêmeos idênticos, por exemplo", diz Rehen. A alteração nos cromossomos introduziria um elemento de inesperado no processo que leva à maturação do cérebro ao longo da vida.
(Eduardo Geraque e Reinaldo José Lopes)
DNA saltador também pode forjar órgão
Se a perda de cromossomos adiciona um elemento interessante de "jogo de dados" à formação de neurônios, um fenômeno ainda mais amalucado talvez transforme a estruturação do cérebro em algo muito parecido com uma loteria. Trata-se da intensa atividade de DNA saltador no genoma neuronal.
Conhecidos como retrotransposons, esses elementos de DNA, que talvez sejam resquícios de antigos vírus, podem se copiar de um ponto a outro do genoma, alterando o funcionamento dos genes nos quais se enfiam.
O brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego, é um entusiasta dessa linha de pesquisa e já conseguiu demonstrar que parece haver um elo entre diferenciação dos neurônios e atividade do DNA-saltador. "E essa atividade é muito maior no cérebro do que em tecidos como o coração, por exemplo", afirma Muotri.
(Reinaldo José Lopes)(Folha de SP, 12/10)
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