No Brasil, 80% da população está nas áreas urbanas, mas os efeitos da falta de políticas ambientais e do crescimento desordenado das metrópoles na saúde dos seus habitantes ainda são pouco discutidos.
Tentando mudar essa realidade, o Instituto Saúde e Sustentabilidade lança o livro Saúde e Meio Ambiente: o desafio das metrópoles. O Ecocidades conversou sobre esse assunto com o coordenador da obra, Paulo Saldiva, professor titular de Patologia da Faculdade de Medicina da USP e membro do Comitê da OMS que definiu os novos padrões de qualidade do ar. Na área metropolitana de São Paulo, estima-se um excesso de 7 mil mortes por ano decorrentes de problemas causados pela poluição do ar – número maior do que os de AIDS e tuberculose somados. O livro será lançado nesta sexta-feira, 25 de fevereiro, em São Paulo*.
Como surgiu a ideia de lançar o livro?
Esse projeto do Instituto Saúde e Sustentabilidade pretende reunir em um só lugar informações de múltiplas fontes, para permitir às pessoas se inteirarem sobre o tema. A ideia era pegar os milhares de trabalhos científicos que estudam o efeito das condições de vida nas megacidades sobre a saúde. Isso engloba falar sobre ilhas de calor, o perigo de morar em regiões com riscos de inundações e deslizamentos e a política de formar cidades cada vez menos compactas – o que obriga a construção de uma enorme infraestrutura de mobilidade e de fornecimento de água e esgoto. A ideia era traduzir isso em uma obra clara, para quem não tem formação técnica no assunto e que oferecesse uma visão global dos problemas. Queremos que os cidadãos vejam essa fotografia. No momento em que a discussão é trazida para perto das pessoas, elas se interessam.
Nesse trabalho são abordados problemas principalmente de São Paulo. Por quê?
Nós escolhemos São Paulo primeiro por ser uma megalópole que teve um crescimento desordenado e, segundo, por contarmos com bom um banco de dados sobre ela. Cada grande cidade tem seu diagnóstico particular e complexo. Aqui a velocidade do trânsito é baixa, as ilhas de calor estão preservadas, o nível de poluição está demonstrado. Todo mundo sabe o que faz mal e o remédio não é tomado. Depois, gostamos de São Paulo e queremos melhorá-la. É muito fácil gostar da Gisele Bündchen, ela não precisa nem abrir a boca… O duro é você gostar de São Paulo, que tem muito problemas e nenhuma beleza natural evidente.
Se o remédio é conhecido, por que não é usado?
Os interesses econômicos dentro da cidade de São Paulo são muito poderosos. É o lugar onde um quarto do combustível do Brasil é vendido, é onde se encontram as sedes dos maiores grupos financeiros e é onde, digamos, a polêmica entre a aparente divisão entre desenvolvimento e sustentabilidade ocorre com maior intensidade. Existem soluções para tudo, você pode facilmente colocar combustível limpo na frota de São Paulo. Ou poderíamos pegar a Avenida Paulista e dividi-la em duas metades, com corredores exclusivos para ônibus, como fez o prefeito de Bogotá. Mas também existe um problema cultural. As pessoas ainda estão esperando uma solução milagrosa, uma solução tecnológica. E sozinha a solução tecnológica não vai resolver. É preciso mudar hábitos. Se isso não acontecer, os gestores terão que tomar medidas muito impopulares. Imagine o dia em que utilização de automóveis na Paulista for restringida. Acho que vai ter uma forte campanha contra. E o prefeito que fizer isso não vai se eleger mais para nada, nem para síndico de prédio. Ninguém em sã consciência vai tomar medidas que comprometam para sempre o seu futuro político.
Qual é a magnitude do problema da poluição do ar?
No Brasil, de modo geral, está melhor porque houve melhoria tecnológica. Mas em algumas áreas piorou. É o caso do campo, por conta das queimadas, uso intensivo de pesticidas e, também, por menor fiscalização. Nas grandes cidades tende a melhorar, mas ela ainda é suficiente para causar problemas. Estima-se um excesso de 7 mil mortes ao ano na região metropolitana de São Paulo e 4 mil na capital. Esse número é maior do que os de AIDS e tuberculose somados, que são considerados problemas de saúde pública. A própria Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que, entre as causas evitáveis, a poluição do ar mata mais do que cigarro. Embora o cigarro seja muito pior do que a poluição do ar, o seu risco se aplica apenas aos fumantes, enquanto a poluição atinge a todos.
Como a poluição afeta a saúde do indivíduo?
A poluição do ar age da mesma maneira que o cigarro, só que em menor escala. Causa e piora doenças respiratórias, causa câncer de pulmão, doenças coronarianas e aumenta o número de partos prematuros…. A diferença é que quando você põe todo mundo para respirar ar poluído, aumenta o número de vulneráveis. A poluição do ar é a mais democrática das poluições. No caso da água contaminada, só é afetado quem tem contato direto. É possível comprar água engarrafada ou ter uma estação de tratamento. Não existe uma estação de tratamento do ar, nós temos que lidar com o ar que nós temos.
O que o paulistano deve fazer para se proteger?
Os cuidados que cada um pode tomar vão depender da sua condição financeira. Do ponto de vista da exposição, é recomendado evitar os horários de pico e minimizar o seu tempo de permanência nos corredores de tráfego. Mas se o indivíduo bate ponto fica meio difícil. O que se pode fazer é praticar um pouco mais de exercício físico, que é anti-inflamatório e melhora as defesas contra a poluição. Também é bom beber mais água, porque tanto a parte respiratória quanto a cardiovascular se beneficiam da hidratação. Em relação à alimentação, deve-se ingerir frutas e tudo o que envolve betacaroteno e vitamina E. Há estudos mostrando que crianças e adultos adeptos a uma dieta rica em antioxidantes naturais mantêm uma saúde melhor.
Quanto tempo de vida pode perder uma pessoa que mora em São Paulo?
Ela pode sofrer uma redução de mais ou menos 9 a 10 meses para cada 10 microgramas de material particulado fino inalado. Isso significa que a expectativa de vida em São Paulo aumentaria em um ano e meio caso a gente tivesse a poluição de Recife, por exemplo.
E qual é o impacto que a poluição do ar no orçamento público destinado à saúde?
Na cidade de São Paulo a poluição do ar custa, considerando as internações no SUS, de 180 a 200 milhões de reais por ano. Se multiplicar esse valor por três, ou seja, cerca de 600 milhões de reais, você chega ao número do SUS somado ao das redes conveniadas. Se contabilizar a mortalidade precoce, que contabiliza a perda do valor de anos produtivos, esse custo ultrapassa 2,5 bilhões de reais. A conta que se faz é que, no nível em que estamos hoje – de poluição intermediária –, para cada real investido em controle de poluição você economiza de R$7 a 8 em gastos de saúde nos cinco anos subsequentes. Não existe nenhum investimento público hoje com taxa de retorno tão alta. Defendemos igualmente que esse enorme custo da poluição, hoje pago por todos, deveria ser pago por quem polui. Agora, não adianta ficar só apelando para a responsabilidade social e ambiental das empresas. O compromisso delas é diferente, é com o lucro. Ninguém vai prejudicar os seus acionistas em nome de uma causa ambiental vaga.
Que tipo de medidas de curto prazo podem ser tomadas para melhorar a situação da cidade?
Embora com atraso, algumas já começaram, como a expansão da malha do metrô. É possível investir em transporte público de qualidade e na criação de corredores de ônibus. O governo municipal já proibiu, a partir de 2018, sua frota de utilizar combustíveis fósseis. Houve um avanço grande recente, mas ele foi circunstancial, porque o Secretário Municipal do Meio Ambiente é médico. Assim, certas providências não foram fruto de um diálogo institucional, mas de um feliz acaso. E boa política pública, de longo prazo, não se faz a partir de acasos felizes.
Existe um descompasso entre a produção científica e a formulação de políticas públicas?
Sim, a Universidade de São Paulo está entre os cinco grupos que mais publicam no mundo sobre poluição do ar e saúde e, apesar disso, nós não temos conseguido controlar de forma adequada a poluição, mostrando que a universidade falhou em criar mecanismos que influenciem as políticas públicas. Além disso, a qualificação dos nossos gestores, do ponto de vista técnico, não é das melhores – e olha que nós temos uma agência ambiental muito sofisticada que é a Cetesb. Fazer vigilância ambiental ainda não entrou na agenda do Brasil. E não somos apenas nós. Pouco se faz na América Latina e África mesmo que, de acordo com a OMS, as condições ambientais sejam responsáveis por 20% a 30% das causas evitáveis de doenças e mortes.
Qual a razão desse imobilismo?
Aqui a gente separou saúde e meio ambiente. Floresta faz parte da agenda ambiental, cidade não. Tiramos o homem do elenco das espécies a serem preservadas. Além disso, nós, pesquisadores, temos muita dificuldade de diálogo com o sistema público. Na academia, o horizonte é de longo prazo. Eu posso fazer um projeto que demora seis anos para ser concluído e não depende da mudança de prefeito. Então, você progride, mesmo a passos lentos. A burocracia interna das universidades, incluindo a USP, faz com que as pesquisas andem em velocidade de lesma paralítica. Mas quando chega a parte do governo, a velocidade é de lesma paraplégica, porque lá o peso dos interesses econômicos é muito maior. Mesmo assim, a produção científica faz diferença. Não fomos o único fator, mas as informações desse grupo de pesquisa da USP influenciaram a revisão dos padrões de qualidade do ar da cidade de São Paulo. Acho que se São Paulo pode mudar, o Brasil também pode.
* O lançamento é aberto ao público e acontecerá às 19h na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio, 278 – 9º Andar, São Paulo
(Oeco)
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