O impacto da transformação de uma vida em outra

Feito tecnológico de Venter causou revolução midiática como a clonagem da ovelha Dolly em 1996.










Dolly (acima) e DNA sintético: polêmicas

"Criada vida artificial”, “Ciência cria primeira célula sintética” foram algumas das manchetes citando o trabalho de Craig Venter, publicado na revista Science, “Creation of a bacterial cell controlled by a chemically synthesized genome”. Na realidade foi uma bela obra de engenharia genética, mas não se criou vida. A equipe de cientistas utilizou vidas existentes, tanto de bactérias como de leveduras, para conseguir esse feito. É importante deixar isso muito claro. O que os pesquisadores fizeram foi transformar uma vida em outra, no caso uma bactéria Mycoplasma capricolum em outra, a Mycoplasma mycoides. Esse feito me lembrou a clonagem da ovelha Dolly, por Ian Wilmut, em 1996. Os dois causaram uma revolução midiática e podem até ser comparados. Wilmut transferiu o genoma retirado de uma célula – no caso, da glândula mamária da ovelha Dolly – para um óvulo sem núcleo e, após inseri-lo em útero, gerou um clone de Dolly. Venter transferiu o genoma de uma bactéria em outra que assumiu o comportamento da primeira.

Não poderia haver ninguém mais capacitado do que Venter para montar o quebra-cabeça do genoma de uma bactéria – com 1 milhão de pares de bases – e sintetizá-lo no laboratório. Afinal, foi ele que inventou um método para desmontar o quebra-cabeça do genoma humano – o que permitiu acelerar muito o seu sequenciamento. Para quem desenvolveu tecnologias capazes de sequenciar um genoma de 3 bilhões de pares de bases – o genoma humano – remontar os pedaços de DNA de um genoma de 1 milhão de pares de bases, como é o caso da bactéria Mycoplasma mycoides, parecia fácil. Afinal, ela é 3 mil vezes menor. Mas, mesmo assim, foram 15 anos de trabalho envolvendo 24 cientistas, a um custo de US$ 40 milhões. Nada trivial! A sequência do genoma da Mycoplasma mycoides já estava disponível no banco de dados do computador. Mas, para copiar a receita e sintetizar um cromossomo artificial no laboratório, os pesquisadores tiveram que usar leveduras – que também são organismos vivos – e que têm a capacidade de unir pequenos pedaços de DNA. Uma vez sintetizado o DNA, o próximo obstáculo era inseri-lo em outra bactéria, conseguir que a célula receptora não destruísse o genoma exógeno e o incorporasse como se fosse seu. Sem dúvida, um grande feito de engenharia genética.

Trata-se de uma revolução? Midiá¬tica, sem dúvida. A repercussão na imprensa do trabalho de Venter me lembrou da clonagem da ovelha Dolly por Ian Wilmut em 1996. Vocês devem se lembrar. “Vão clonar seres humanos! Estão brincando de Deus. Vamos criar imediatamente comitês científicos para proibir a clonagem reprodutiva humana.” Isso era repetido constantemente pela mídia. Lembro-me muito bem porque fui convidada a fazer parte de um desses comitês, todos preocupadíssimos em proibir a clonagem humana. Eu estava muito menos temerosa com os riscos de se fazerem clones humanos e muito mais interessada em que se aprovassem as pesquisas com células-tronco embrionárias. E foi o que acabou acontecendo. Hoje, 14 anos depois, ninguém mais fala de clonagem reprodutiva humana. Mas estamos revendo esse filme, agora com o suposto risco de se criar “vida em laboratório”. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, já determinou a instituição de comitês de ética para que sejam identificados os limites éticos e minimizados os possíveis riscos. Por outro lado, o pediatra Carlo Bellieni, no diário do vaticano L’ Osservatore Romano, diz que “a pesquisa é um trabalho de engenharia genética de alto nível, mais um passo na substituição de parte de DNA, mas na realidade não se criou vida”. Concordo com ele.

Quais são as implicações futuras? Quais serão as aplicações? É difícil prever. No caso da ovelha Dolly a grande revolução foi descobrir que uma célula adulta poderia ser reprogramada e voltar a ser totipotente, o que abriu caminho para as pesquisas com células-tronco. Já a estratégia para criar a bactéria de Craig Venter poderá permitir aprimorar as técnicas de engenharia genética, produzindo novos microrganismos úteis ao homem, como por exemplo bactérias mais eficientes em degradar a celulose ou o plástico, gerando novas formas de combustível biodegradável. Ou bactérias intestinais que nos permitissem digerir a celulose tão bem como os ruminantes. Além disso, ela poderia contribuir para melhorar as técnicas de terapia gênica, corrigindo genes defeituosos em pacientes com doenças genéticas. Um outro grande feito do qual se falou pouco foi a estratégia utilizada por Venter para que a bactéria receptora não destruísse o genoma da bactéria doadora e o adotasse como se fosse seu. Essa tecnologia poderia abrir novos caminhos para impedir a rejeição no caso de transplantes alogênicos ou talvez até xenotransplantes. O futuro dirá. Deu-se mais um salto qualitativo tecnológico que certamente merece ser aplaudido.

Mayana Zatz é professora titular do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP.

Fasesp - Mayana Zatz - Edição Impressa 172 - Junho 2010

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