A ressurreição do vírus da pólio

"A dificuldade em erradicar a pólio demonstra como uma tarefa aparentemente fácil (pingar duas gotas na boca de cada criança) pode beirar a inviabilidade quando necessita do envolvimento e aprovação de toda a população do planeta"

Fernando Reinach é biólogo. Artigo publicado no "Estado de SP":

Levar uma espécie à extinção pode ser motivo de orgulho. Poucas pessoas se lembram que a extinção do vírus causador da varíola foi uma das grandes conquistas da medicina no século 20. Hoje, esse vírus só existe em freezers, nos laboratórios de alta segurança. As últimas amostras só não foram destruídas para permitir a produção da vacina se algum dia a doença ressurgir.

Com a vitória sobre a varíola, declarada extinta em dezembro de 1979, os exterminadores decidiram concentrar seus esforços na erradicação da poliomielite. A campanha começou em 1985, quando Ciro de Quadros, um brasileiro de Porto Alegre, liderou ações de erradicação nas Américas (o ultimo caso ocorreu no Peru, em1991).

Em 1988, a Organização Mundial da Saúde resolveu estender o programa para o planeta. Os 350 mil novos casos de 1988 foram reduzidos para 1.652 em 2007, coma doença restrita somente à Nigéria, Índia, Afeganistão e Paquistão. A arma principal foi a vacina oral. As famosas "gotinhas que salvam" contêm o vírus vivo, mas atenuado. Com um custo de centavos de dólar por dose, ela permitiu levar o vírus quase à extinção.

Depois de enfrentar as dificuldades logísticas das campanhas de vacinação na África e os boatos de que a vacina causava infertilidade em meninas (o que levou muitos países a cancelar as campanhas e permitiu a volta da doença), os exterminadores da pólio agora enfrentam um novo problema. Ficou comprovado que muito, muito raramente, o vírus atenuado da vacina pode reverter à sua forma virulenta.

O vírus da pólio ocorre na natureza em três formas distintas (sorotipos 1, 2 e 3). Os três sorotipos estão presentes nas vacinas. Em 1999 foi registrado o último caso de um doente infectado com o vírus do tipo 2. Desde então, esse tipo havia sido considerado extinto. Agora ele reapareceu na Nigéria.

Até o dia 26 de julho de 2009 haviam sido detectados 124 casos de paralisia infantil causados pelo sorotipo2. O mais preocupante é a origem desse vírus ressuscitado. Tudo indica que ele se originou do vírus atenuado presente na vacina, que teria sofrido uma mutação e se tornado capaz de provocar a paralisia. A boa notícia é que as pessoas vacinadas são imunes a esse novo vírus do tipo 2.

A dúvida agora é saber se a vacina oral, contendo vírus atenuado, poderá ser usada nas últimas etapas da erradicação da pólio. Alguns cientistas acreditam que o fato de o vírus atenuado ser capaz de se tornar patogênico demonstra que será necessário mudar a estratégia e utilizar a vacina com vírus morto para impedir que esses poucos eventos de reversão provoquem o ressurgimento da doença. A vacina com vírus morto tem a desvantagem de ser administrada por meio de injeção, o que dificulta muito a vacinação em países como a Nigéria.

Um outro grupo de cientistas acredita que a taxa de reversão é tão baixa - alguns casos em mais de 30 anos e centenas de milhões de pessoas vacinadas - que esse não será um problema, caso se consiga realmente vacinar de maneira sistemática a grande maioria das crianças em todo o mundo. Mas o que todos concordam, e temem, é que boatos sobre a segurança da vacina retardem ou paralisem as campanhas de vacinação.

A dificuldade em erradicar a pólio demonstra como uma tarefa aparentemente fácil (pingar duas gotas na boca de cada criança) pode beirar a inviabilidade quando necessita do envolvimento e aprovação de toda a população do planeta. Ambientalistas que pregam mudanças globais de comportamento têm muito a aprender com os exterminadores de vírus.

Mais informações: Type 2 poliovirus back from the dead in Nigeria. Nature, vol. 325

(O Estado de SP, 27/8)