Marionetes de oito patas

Larvas de vespas manipulam o comportamento de aranhas.
Em busca de teias com duas a três centenas de aranhas de uma espécie que vive em colônias, os biólogos Marcelo Gonzaga e Jober Sobczak encontraram algo ainda mais surpreendente: uma vespa pousada numa teia sem aranha à vista. Um excursionista desavisado provavelmente passaria sem dar atenção à cena, mas Gonzaga rapidamente armou a câmera fotográfica.
 
Duelo: vespa Hymenoepimecis bicolor ataca aranha Nephila clavipes

O instinto estava certo: logo em seguida, uma mosca foi capturada pela teia, a aranha saiu da folha enrolada que lhe servia de abrigo e, antes que alcançasse a refeição do dia, foi atacada. A vespa agarrou a aranha e inseriu o ovipositor na boca da dona da teia, liberando uma substância paralisante por tempo suficiente para que pudesse grudar um ovo na parte posterior do abdômen da vítima. O pesquisador não tirou o dedo do obturador da câmera e documentou tudo. “Foi muita sorte, não imaginávamos encontrar isso”, conta Gonzaga, professor na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Hymenoptera Parasitoides da Região Sudeste Brasileira.

O encontro fortuito na serra do Japi, uma reserva de mata atlântica em Jundiaí, interior de São Paulo, aconteceu em 2007 e deu origem à primeira descrição de parasitismo de uma aranha (Araneus omnicolor) por uma vespa (Hymenoepimecis veranae) no país. Um caso similar fora relatado sete anos antes por William Eberhard, da Universidade da Costa Rica. De lá para cá Gonzaga manteve contato com o colega da América Central e descreveu o comportamento parasitoide, interação em que o hospedeiro sempre é morto pelo parasita, de mais seis espécies de vespas, duas delas até então desconhecidas pela ciência.

O que descreveram Gonzaga e Sobczak – aluno de doutorado de Angélica Penteado Dias, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), co-orientado por Gonzaga – é um procedimento complexo que envolve manipulação do hospedeiro pela vespa. Depois de paralisar a aranha (o veneno atinge o sistema nervoso central pelo gânglio subesofágico), a vespa inspeciona o abdômen da vítima e, se necessário, mata e remove alguma larva competidora. Na sequência, deposita ali um ovo de onde sai uma larva que adere ao corpo da aranha, faz furos em seu abdômen e se alimenta de hemolinfa, fluido correspondente ao sangue.

Duas semanas depois, na hora de a larva formar o casulo em que se tornará uma vespa adulta, a aranha subitamente altera a estrutura de sua teia. Ela praticamente deixa de produzir a espiral de fios viscosos que capturam as presas e monta uma estrutura mais simples e resistente – em alguns casos, cria até uma barreira de seda protegendo o casulo. A larva então se prende aos fios da teia com estruturas em forma de gancho que surgem em sua carapaça na última muda, mata a aranha e forma seu casulo (ver vídeo no site Pesquisa FAPESP).

Em 40% das 85 teias examinadas em trabalho publicado em 2007 na Naturwissenschaften, a dupla de biólogos encontrou fêmeas maduras de aranhas com parasitoides ou já só o casulo preso à teia. É uma proporção alta, até porque as vespas não atacam qualquer aranha. Gonzaga e Sobczak não encontraram machos parasitados, mas é cedo para dizer se eles não são vítimas por serem menores ou se não estavam à disposição dos pesquisadores na época do ano em que foi feito o levantamento, entre março e abril. Gonzaga explica que as fêmeas muito grandes têm mais capacidade de lutar e virar o jogo, transformando a vespa em almoço. “Nunca encontramos fêmeas grandes parasitadas”, conta. Já as aranhas pequenas parecem não ser um bom alvo por não terem tamanho suficiente para sustentar o desenvolvimento de uma larva de vespa. Além disso, as habitantes imaturas de teias ainda têm de passar por mudas (troca do esqueleto, que é externo) até chegar ao tamanho de um adulto, o que deixaria a larva presa a uma casca seca e oca nada nutritiva. Para sobreviver, as vespas precisam escolher bem.

Encontrar novos casos de vespas parasitoides e descrever a interação entre elas e os hospedeiros foi só o primeiro passo da pesquisa. Até agora, as espécies identificadas no Brasil foram achadas na mata atlântica, em São Paulo e no Espírito Santo. No entanto, isso não significa que vespas parasitoides de aranhas sejam exclusivas desse ecossistema. A restrição geográfica é determinada pela região onde Gonzaga fez seus levantamentos – ele trabalhou na mata atlântica durante o pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e no período no qual foi pesquisador na UFSCar com financiamento do programa Jovens Pesquisadores da FAPESP.

Em Uberlândia desde 2008, Gonzaga começa agora a explorar o cerrado na Estação Ecológica do Panga, uma área de pesquisa da UFU a 30 quilômetros da cidade. “Já vi que a interação entre Nephila e Hymenoepimecis bicolor, que observamos na serra do Japi, também existe no cerrado”, relata o biólogo. Ele também descobriu uma espécie de vespa parasitoide de aranhas que vivem em colônias, mas falta publicar a descrição. Parte do processo de descrição do parasitoidismo tem sido comparar os comportamentos que Gonzaga e Sob­czak encontram aqui no Brasil com aqueles achados por Eberhard na Costa Rica. “Até agora os padrões comportamentais se repetem, e as modificações nas teias são parecidas.”

Mecanismos – Outra fase do estudo, que vem acontecendo ao mesmo tempo, é entender o que dá à aranha o sinal de modificar a teia. Os biólogos brasileiros já descartaram a hipótese de que a energia sugada pelas larvas alteraria o comportamento da aranha, como mostraram em experimento descrito em 2010 na Ethology, Ecology and Evolution. Em campo, eles puseram gaiolas de bambu e tela em volta dos galhos e arbustos que sustentavam 15 teias, de maneira a impedir que os insetos chegassem a elas. Eles então controlaram a alimentação das aranhas por 21 dias. Um grupo sem parasitoides ganhava uma mosca por dia, outro também sem a larva ficava sem comida e o terceiro grupo, de aranhas parasitadas, recebia uma mosca a cada dia. As aranhas ficaram mais fracas com o tratamento, mas não passaram a produzir teias como as que sustentam casulos.

Em colaboração com um grupo da Unicamp, Sobczak tenta descobrir possíveis alterações químicas nas larvas em estágio final do desenvolvimento. “Não sabemos se a larva injeta um composto desconhecido na hospedeira ou se induz a aranha a produzir uma substância parecida com a que libera antes da muda, já que a teia modificada lembra a que as aranhas constroem nesses momentos”, explica Gonzaga.

http://revistapesquisa.fapesp.br/?art=4351&bd=1&pg=1&lg
(Maria Guimarães- Fasesp)

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