A terceira onda

Grupos do Brasil e do exterior iniciam nova fase de busca por uma vacina contra o HIV

É um erro imaginar que os antirretrovirais impedirão sozinhos o avanço da Aids; só 40% dos portadores do HIV têm acesso a medicamento

Dois estudos publicados na revista Science no início de julho renovaram a esperança de que um dia, ainda que distante, se produza uma vacina eficaz e segura contra o HIV, vírus que nas últimas três décadas infectou 60 milhões de pessoas no mundo e matou 27 milhões, número de vítimas talvez inferior apenas ao deixado pela epidemia de gripe de 1918 e pela Segunda Guerra Mundial. Em um dos trabalhos pesquisadores de duas universidades norte-americanas e dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), o maior centro de pesquisas médicas do mundo, isolaram dois anticorpos altamente potentes do sangue de um portador do vírus da Aids. Cada um dos anticorpos – o VRC01 e o VRC02 – mostrou-se capaz de neutralizar 91% das 190 variedades mais comuns do HIV, desempenho bem superior ao dos anticorpos mais eficientes encontrados anteriormente, que bloqueavam a ação de 40% das cepas. No outro estudo uma equipe da qual participou o imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, analisou a estrutura e as características moleculares do VRC01 e identificou a região do vírus a que esse anticorpo adere, impedindo o HIV de infectar as células humanas.

“Esses resultados são muito encorajadores e abrem um novo caminho para o desenvolvimento de uma vacina contra o HIV”, afirmou o imunologista Anthony Fauci, um dos mais respeitados pesquisadores de Aids no mundo e diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, um dos 27 centros que integram os NIH, em entrevista por e-mail à Pesquisa FAPESP.

Mais do que representar o sucesso de um grupo científico de elite, esses trabalhos reiteram os acertos de uma nova era de buscas de vacinas que vem sendo chamada de terceira onda. Iniciada há dois ou três anos, essa mudança de rumos tenta corrigir os problemas identificados nos estágios anteriores, nos quais foram estudadas dezenas de formulações candidatas a vacina anti-HIV – das quase 30 que passaram por algum estágio de teste em seres humanos, só uma gerou proteção, mas em nível muito baixo. Diante das tentativas frustradas e de um investimento mundial de quase US$ 1 bilhão por ano nos últimos anos, a comunidade científica internacional e a sociedade civil organizada se reuniram, revisaram suas metas de desenvolvimento de vacinas e decidiram investir mais esforço, tempo e dinheiro em tecnologias mais inovadoras, mas potencialmente mais eficientes. Foi uma mudança de rumos que abriu espaço para a participação, ainda que incipiente, de equipes brasileiras na corrida por uma vacina.

“Houve um avanço expressivo nessa área nos dois últimos anos e o Brasil não pode ficar para trás”, diz Cristina Possas, responsável pela Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde. Com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Iniciativa Internacional por uma Vacina Antiaids (Iavi), o grupo de Cristina faz um levantamento da capacidade nacional de pesquisa e desenvolvimento tecnológico em produção de vacinas anti-HIV. Dados preliminares do estudo, a ser apresentado em outubro na Academia Brasileira de Ciências, mostram que o investimento brasileiro é modesto e está concentrado no Ministério da Saúde. Desde 1999 o ministério investiu R$ 7 milhões em 31 estudos de compostos candidatos a vacinas anti-HIV, 95% do total aplicado na área no país, enquanto a África do Sul aplicou U$ 200 milhões. “É preciso ampliar a parceria com outras agências de financiamento no país”, afirma Cristina.

Na Conferência Internacional de Aids realizada em julho, lembra Cristina, ficou claro que é um erro imaginar que os medicamentos sozinhos vão impedir a disseminação da Aids. A Organização Mundial da Saúde estima que só 40% de portadores do HIV tenham acesso aos remédios – e, calcula-se, para cada duas pessoas que iniciam o tratamento, outras três contraem o vírus. Pioneiro na distribuição gratuita de antirretrovirais, o Brasil vem investindo valores crescentes, que em 2009 somaram R$ 1 bilhão, no tratamento da Aids. “Um dos maiores gastos do Ministério da Saúde é com medicamentos anti-HIV”, diz o imunologista Ernesto Torres Marques, membro do Comitê Técnico Assessor Nacional de Vacinas anti-HIV do ministério.

É consenso entre pesquisadores e membros da sociedade civil organizada que, para conter a pandemia de Aids, será preciso usar todos os meios à disposição, que incluem campanhas de educação sexual e orientação para a prática de sexo seguro. Além disso, claro, uma vacina. “Se a postura do Brasil for de esperar que outros resolvam esse problema, mais adiante teremos de pagar pelo que desenvolveram”, diz Marques, pesquisador da Universidade de Pittsburgh e da Fundação Oswaldo Cruz, criador de uma tecnologia que tenta facilitar a entrada dos componentes de uma possível vacina nas células e, assim, intensificar a resposta imunológica do organismo.

Desde que o HIV foi identificado em 1983 como agente causador da Aids, a síndrome que aniquila o sistema de defesa humano e deixa o organismo suscetível a diversas infecções, pesquisadores do mundo todo buscavam anticorpos tão potentes como os descritos na Science. Mas não os haviam encontrado. A maioria dos anticorpos aderia a variedades específicas do vírus e não as neutralizava. A descoberta apresentada em julho restaura o ânimo dos pesquisadores depois de anos de resultados pífios porque prova uma antiga hipótese. Se o organismo de um portador do HIV produziu naturalmente anticorpos tão eficientes, é possível, ao menos em teoria, estimular o de outras pessoas a fabricá-los também por meio da aplicação de uma vacina.

Mas não será fácil nem rápido chegar a essa vacina. Primeiro é preciso descobrir como reproduzir artificialmente as proteínas da superfície do vírus que, em contato com as células de defesa, levam à produção desses anticorpos potentes, verificar a forma mais eficiente de introduzi-las no organismo e avaliar se de fato funcionam. Só então, vencidas também as etapas de produção industrial e de testes em animais e seres humanos exigida pelos órgãos de saúde para liberar a comercialização, se terá obtido a desejada vacina preventiva, capaz de evitar a infecção pelo HIV quando aplicada em pessoas saudáveis.



Ricardo Zorzetto- Fasesp

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